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Traduções: Stephanie Sacharek

Nessa última edição de 2020, optamos por traduzir dois textos que fazem um balanço ou retrospectiva do ano, observando questões políticas, sociais e afetivas tornadas mais evidentes e urgentes pela pandemia. Ainda que os artigos sejam relativos aos contextos belga e norte-americano, eles abordam temas como: violência contra a mulher na crise sanitária, saúde mental, acesso à rede pública de saúde e/ou redes públicas de apoio, racismo, violência policial e, finalmente, solidariedade. Trata-se, assim, de questões prementes em todos os países do globo, sobre as quais devemos refletir para, quem sabe, tentar nos reconstruir, enquanto sociedades, em novas bases.


2020 nos testou além da medida. Para onde vamos daqui?


Por Stephanie Sacharek*



Houve anos piores na história dos Estados Unidos e, certamente, piores anos na história mundial, mas a maioria de nós vivos hoje não viu nada como este. Você precisaria ter mais de 100 anos para se lembrar da devastação da Primeira Guerra Mundial e da pandemia de gripe de 1918; cerca de 90 para ter uma noção da privação econômica causada pela Grande Depressão; e estar em seus 80 anos para reter qualquer memória da Segunda Guerra Mundial e seus horrores. O restante de nós não teve qualquer preparo[1] para isso - para a recorrência de desastres naturais que confirmam o quanto traímos a natureza; para uma eleição disputada com base na fantasia; para um vírus que se originou, possivelmente, com apenas um morcego para virar de cabeça para baixo a vida de praticamente todos no planeta e acabar com a vida de cerca de 1,5 milhão de pessoas em todo o mundo.


Meu trabalho como crítica de cinema é olhar para os filmes e descobrir suas conexões com o mundo e com nossas vidas. Se 2020 fosse um filme distópico, você provavelmente o desligaria após 20 minutos. Este ano não foi terrivelmente emocionante, como um apocalipse fictício. Foi, além de forjado pela dor, irritantemente mundano, a rotina do dia a dia voltada contra nós.


Nossa ameaça mais debilitante este ano foi a sensação de desamparo, e ela correu solta. Embora seja universal entre os humanos acreditar em sua própria fortaleza, os americanos, em particular, estão condicionados a acreditar que podem triunfar sobre qualquer crise. Mas, desde a propagação do fascismo na década de 1930 - uma ameaça que a América não reconheceu ativamente até o amanhecer da década de 1940 -, não havíamos enfrentado tantos eventos anormais que foram distorcidos de forma tão flagrante por lideranças aberrantes. Enfrentamos o indizível, apenas para sermos tortuosamente assegurados de que nada disso era grande coisa. Um vírus irá “desaparecer” magicamente. Não se preocupe, todos os votos serão contados - talvez. A América será grande de novo, se todo mundo simplesmente voltar ao trabalho - e, embora máscara seja opcional, usar uma certamente faz você parecer idiota.


Gaslighting tem sido uma característica importante da vida cívica americana desde 2016, mas em 2020 atingiu novos patamares de excentricidade, fazendo muitos de nós sentirmos como se tivéssemos sido empurrados para o outro lado do espelho. Passamos incontáveis ​​horas presos em casa e conectados à frequentemente não confiável mente coletiva[2] das redes sociais, torcendo as mãos e apontando as injustiças, apenas para acabar se sentindo ainda mais paralisado pelas mesmas pessoas que deveriam nos proteger. O inimigo buscou nos dividir e conseguiu.


E COVID-19, ao que parece, foi o maior presente que o inimigo poderia ter esperado. O desamparo encontrou seu gêmeo do mal, um parceiro no crime que apenas aumentaria seu poder louco: o isolamento. Em março, quando as principais cidades dos EUA se juntaram a outras em todo o mundo para se protegerem contra o vírus, os americanos que podiam trabalhar remotamente descobriram como fazer seu trabalho em casa. Muitos não tiveram esse privilégio e perderam seus empregos, sem meios para pagar o aluguel ou hipoteca e sem ter como alimentar suas famílias. A fome se tornou um grande tema de 2020, apresentando desafios até mesmo em países com instrumentos para amenizá-la. Ao mesmo tempo, pais em todo o mundo, não importando seus meios, se apressaram para cuidar - e educar em casa - seus filhos.


Enquanto isso, trabalhadores essenciais, de balconistas de mercearia a profissionais de transporte, enfermeiras e médicos de hospitais, continuaram a comparecer ao serviço. Víamos clipes de profissionais de saúde no noticiário, seus rostos marcados por horas de uso de EPI, seus olhos pesados ​​de cansaço. Às vezes, incapazes de conter as lágrimas, eles descrevem uma novidade em sua rotina diária: assistir aos pacientes morrerem quando eles não podiam mais mantê-los vivos. Em um horário designado todas as noites, muitos de nós nos inclinamos para fora de nossas janelas, armados com potes e colheres de madeira ou apenas com nossa cacofonia esquisita de vozes humanas, e levantamos um tumulto em apoio a esses trabalhadores. Era o mínimo que podíamos fazer, numa época em que não tínhamos ideia do que fazer.


Isso começou em março, o início de um período em que a maioria de nós se sentia envolta em nossos próprios globos de neve solitários, olhando para um mundo que parecia estar se desintegrando. Realisticamente, o mundo havia começado a desmoronar muito antes: os horríveis incêndios florestais australianos vinham ocorrendo há meses e não seriam sufocados até meados do ano - bem a tempo para a temporada de incêndios florestais no oeste americano, com seu próprio ciclo descarado de devastação. Fotos de qualquer uma dessas cenas - inquietantes céus alaranjados em partes normalmente paradisíacas da Califórnia, desoladoras vistas aéreas de plumas de fumaça cobrindo a paisagem australiana - pareceriam apocalípticas em qualquer ano. Mas em 2020, com tantos de nós buscando proteção dentro de casa, era particularmente alarmante reconhecer a fragilidade do mundo natural. Pensar nisso se consumindo - até porque nós, humanos, falhamos com nossa má administração - convida ao desespero.


Porque encare os fatos: os humanos muitas vezes podem ser terríveis, tomando decisões precipitadas e egoístas na melhor das hipóteses e matando uns aos outros na pior. Durante a maior parte de 2020, estar trancado por dentro e olhando para fora era sentir-se peculiarmente impotente. E à medida que nos sentíamos mais distantes do mundo como indivíduos, também parecia que as nações individuais começaram a fechar-se sobre si mesmas, motivadas por noções equivocadas de seu próprio poder e autossuficiência. O que uma agenda “America first” significa em um país que falha com seus próprios cidadãos quando se trata de protegê-los de um vírus mortal? Nos piores meses de 2020, fomos uma nação que mal conseguiu se cuidar, quanto mais ajudar alguém durante uma crise. Pior ainda, estávamos a caminho de nos tornar uma nação que não queria ajudar ninguém, mesmo quando era do nosso interesse fazê-lo. E a democracia - não um distintivo que você pode ganhar, no estilo escoteiro, mas uma prática e disciplina que precisa de cuidadosa atenção - passou a parecer vacilante e frágil mesmo em lugares que há muito professam acreditar nela. Como se fosse uma moda passageira da qual todos nós nos cansamos.


As páginas desse estranho calendário não paravam de virar, com a ameaça da pandemia passando por tudo isso. Figuras públicas que significavam muito para nós - Ruth Bader Ginsburg, John Lewis, Kobe Bryant, Chadwick Boseman - nos foram arrancadas.E em maio, o assassinato de George Floyd pelas mãos da polícia em Minneapolis inflamou a raiva justificada não apenas em todo o país, mas em todo o mundo. A crueldade desse ato reavivou a atenção para ultrajes semelhantes no início do ano, especialmente os assassinatos de Breonna Taylor e Ahmaud Arbery. Também nos lembrou quantas vezes, ao longo da história, os negros sofreram injustiças semelhantes, sem recurso, sem meios de mudar o status quo.E então, em agosto, mesmo com o mundo inteiro assistindo, a polícia em Kenosha, Wisconsin, atirou e paralisou parcialmente outro homem negro, Jacob Blake, enquanto três de seus filhos assistiam do banco de trás de seu carro.


As tradições tóxicas de injustiça e desigualdade na América não são segredo. Uma sequência de eventos trágicos finalmente fez com que mais brancos acordassem. Resta ver se essa consciência intensificada do racismo que tem atormentado nosso país desde sua fundação se traduz em mudanças reais. Esse é apenas um dos muitos pontos de interrogação que nos esperam em 2021 e além. Depois de um ano de tantas mudanças, mudaremos radicalmente também?


Aprendemos muito em 2020 - mas o que, exatamente, aprendemos? Os lugares comuns[3] já estão fluindo livremente: diminuímos a velocidade. Aprendemos o que era importante. Jogamos jogos de tabuleiro, quebra-cabeças e realmente conversamos com nossos filhos e os ouvimos. Todas essas coisas são, sem dúvida, boas, e acenamos com a cabeça em solene concordância quando nossos vizinhos enumeram essas pequenas bênçãos. Mas algum deles captura a microtextura de como nossas vidas foram neste ano? Em nossas cidades, quando nos disseram que não deveríamos sair de jeito nenhum, exceto para exercícios ocasionais, caminhadas ao sol se tornaram a coisa a que nos agarramos. Que sorte tivemos em poder fazer isso, pelo menos! Nos subúrbios, nossas rotinas restritas abriram novas rotas de criatividade: podíamos desviar de nosso caminho para ver um pôr do sol espetacular ou, finalmente, enfrentar uma trilha que sempre quisemos explorar. Então chegou o momento em que foi possível encontrar um amigo para uma taça de vinho para viagem - este se tornou o verão do rosé morno e ácido em um copo de plástico, mas representou um privilégio e um prazer que, nos primeiros meses, não tínhamos certeza que teríamos.


Quando os museus finalmente reabriram, limitando cuidadosamente a capacidade, pudemos voltar a nos familiarizar com as pinturas que amamos, com objetos de ouro que foram colocados nas tumbas de reis há 3.000 anos, com vasos que nossos ancestrais usavam para tarefas simples, mas essenciais, como carregar água daqui para lá ike toting water from here to there. Aproximar-se e examinar uma pincelada de 400 anos conecta você com o humano que a colocou ali. É importante lembrar que a Renascença surgiu enquanto a Peste Negra dizimou grande parte da Europa. Michelangelo e Rembrandt pintaram em sua sombra; a praga tirou a vida de Ticiano. Nossas vidas podem estar difíceis - esta semana, este mês, este ano - mas olhe o que outras pessoas fizeram durante épocas de sofrimento. O rastro de vitalidade e beleza que elas deixaram para trás é suficiente para nos fazer chorar, e às vezes o fazemos - podemos dar isso a eles, pelo menos.


Por esse motivo, talvez muitos de nós tenhamos sentido, ao longo de 2020, mais fácil conectar-se com a arte antiga do que com a nova. Todos os tipos de diversões foram transmitidos diretamente para nossas casas, algumas delas bastante maravilhosas. Como quase todos os nossos sucessos de bilheteria e grandes espetáculos de fim de ano foram cancelados, passamos mais tempo assistindo à estórias[4] sobre seres humanos conversando entre si, em vez de perseguir um monte de pedras mágicas de uma luva cheia de jóias.

Mesmo assim, muito pouco do que assistimos nos ajudou a dar sentido a esse momento. Estamos entediados, estamos ansiosos, estamos sobrecarregados ou, pior, desempregados: tivemos muito tempo para nos conhecer melhor, o que muitas vezes nos deixa mais perplexos e menos confiantes em nosso julgamento. Estamos esgotados. Desistimos e assistimos The Office novamente, embora haja coisas piores. Este não é o momento de sermos duros conosco mesmos por não sabermos exatamente o que queremos, exceto para continuarmos saudáveis ​​e vivos, e para fazermos o que pudermos para garantir que o mesmo aconteça com nossos vizinhos e entes queridos. Em meio aos piores dias da pandemia da primeira onda de Nova York - aqueles dias em abril, quando o número de casos e mortes continuava a subir, quando caminhões refrigerados faziam fila para evitar que os cadáveres apodrecessem, quando não tínhamos ideia de como, ou se, esse horror poderia ser interrompido - um dos meus vizinhos saiu para a escada de incêndio durante a comemoração da noite e recriou "The Star Spangled Banner" de Jimi Hendrix em sua guitarra. As notas gemeram e se dissiparam, aumentaram e chegaram no cume, uma história que tínhamos ouvido um milhão de vezes, mas de alguma forma precisávamos ouvir naquele momento. Aqueles de nós ouvindo de nossas janelas - talvez, por preguiça ou depressão, ainda em nosso pijama às 19h - agarraram-se à sua majestade irregular. Por que nossos antepassados ​​não escolheram um hino nacional mais cantável? Porque estavam esperando a invenção da guitarra elétrica.


Estamos cansados ​​por um bom motivo, mas nossa bandeira ainda está lá. Este vírus ataca os mais fracos e vulneráveis ​​e, portanto, afetou de forma desproporcional certas partes da população. Todas as regras e restrições nos deixaram cansados, mas é mais importante do que nunca estar vigilante. Quando o número de mortos no COVID-19 dos EUA atingiu 200.000, a magnitude desse número parecia inimaginável. Agora chega a 300.000, embora a promessa de várias vacinas pelo menos ofereça esperança. Por enquanto, membros de nossas famílias, amigos que amamos profundamente, pessoas que nunca conhecemos, mas cujo trabalho nos tocou, continuam morrendo. O vírus é um problema generalizado que atinge todos nós de formas dolorosamente pessoais e direcionadas.


Enquanto isso, nosso próprio presidente contraiu o vírus e, poucos dias depois de ser bombeado com esteróides e tratamentos experimentais, saiu em público - ainda, quase sem dúvida, contagioso - para se vangloriar de que, se ele podia driblar a doença, nós também poderíamos. Pouco depois, ele perdeu uma eleição e insistiu que não - mais gaslighting, mas pelo menos estamos tendo algum sucesso em parar a válvula que está emitindo a fumaça. A democracia ainda não morreu. De alguma forma, nós a remendamos com um pedaço de fita adesiva, bem na hora.


[O remendo] vai aguentar? Os estadunidenses são inerentemente otimistas. É por isso que nossos aliados gostam de nós, mesmo que secretamente zombem de nós pelas nossas costas - mas não nos importamos! Somos uma nação com nossos polegares perpetuamente presos em nossos suspensórios. Nosso otimismo é nosso traço mais ridículo e o maior. Nem sempre pode ser o amanhecer na América. Às vezes, temos que passar pela hora mais escura um pouco antes. A aurora espera sua hora.


* Stephanie Zacharek é crítica de cinema da TIME em Nova York. Anteriormente, ela foi crítica de cinema no Village Voice and Salon e foi finalista do Prêmio Pulitzer de crítica em 2015.


O artigo foi originalmente publicado na revista Time, em 5 de dezembro de 2020. Link para a edição original: https://time.com/5917394/2020-in-review/

Crédito da imagem: Photo-Illustration by Neil Jamieson for TIME


Tradução: Gabriela Mitidieri

Revisão : Sheila Lopes Leal Gonçalves


[1] No original: "training wheels”, que são as rodinhas auxiliares que acoplamos nas bicicletas de crianças que estão aprendendo. [2] Nota da tradutora: tradução literal do termo em inglês, “de colmeia” [3] No original: “The bromides are already flowing freely” [4] No original: “stories”. Trata-se de um termo ambíguo pois pode se tratar de “estórias”, no sentido de fábulas, ou “stories”, como os vídeos curtíssimos do app Instagram.



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