
por Patricia Morales[1]
Nunca mais sem “nosotras”[2]: A importância da paridade na Convenção Constituinte[3]
Texto original em: https://www.latercera.com/paula/nunca-mas-sin-nosotras-la-importancia-de-la-paridad-en-el-proceso-constituyente/ de 30 de setembro de 2020
“Tem se produzido um consenso a nível internacional, referendado por acordos e pactos das Nações Unidas e outros organismos, que populações ou grupos historicamente marginalizados das esferas de poder - como os povos indígenas ou as mulheres – ou certas minorias étnicas, religiosas, linguísticas, devem ser representadas por seus próprios integrantes para assegurar uma representação adequada”[4], disse o documento Mecanismos de Cambio Constitucional en el Mundo, análisis de la experiência comparada[5], do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Nele se explica que para que isso ocorra, tem se desenhado mecanismos específicos que asseguram uma presença efetiva e representação equilibrada desses grupos
“Mecanismos como reserva de assentos para povos indígenas ou cotas eleitorais de gênero para as mulheres, por exemplo, tem permitido uma melhor representatividade nas assembleias da diversidade representada nas distintas sociedades”, acrescenta o documento. Dessa forma, a existência de assentos reservados para certos grupos como os povos indígenas na Venezuela ou os imigrantes no Equador e na Tunísia, junto com a exigência de que um número ou porcentagem de candidatos eleitos sejam mulheres no caso da Bolívia, constroem medidas positivas para alcançar tal objetivo.
Porém, no Chile, estamos um passo à frente. Assim, se estabeleceu em 20 de março deste ano quando o governo promulgou a lei de paridade de gênero para o processo constituinte que acontecerá, logo após o plebiscito de 25 de outubro. Uma medida que se concretizada apontaria não apenas um marco para a luta do movimento feminista, como também transformaria o Chile no primeiro país do mundo a ter uma convenção constituinte paritária. Questão esperada pela maioria das chilenas e dos chilenos. Destarte, ao menos apontou uma pesquisa realizada por Ipsos[6] e Espacio Público[7], na qual 71% dos pesquisados – mulheres e homens – acreditam que é importante a paridade de gênero nesse processo.
Essa não é a primeira menção que se põe na mesa sobre o tema. Em junho deste ano, a Corporación Humanas y el Observatorio de Género y Equidad[8] realizou uma medição sobre o processo constituinte na que participaram só mulheres. Foi feita a pergunta: “Você está de acordo ou em desacordo com a lei que obriga a paridade de gênero na eleição dos e das delegadas constituintes? 87% mostrou-se a favor. E essa porcentagem subiu para 92% quando a pergunta era se a presença de mulheres que integrem a Convenção Constituinte contribuirá para que se representem as necessidades e interesses das mulheres em uma nova constituição.
Não cabe dúvida que a paridade de gênero é um tema relevante no processo constituinte, uma espécie de dívida histórica para com as mulheres. “Essas porcentagens explicam a relevância que têm tido às demandas das mulheres no nosso país, margeando o que é possível. Falar de uma convenção constitucional paritária era algo absolutamente impensado um tempo atrás, chegar até aqui fala muito do estilo das mulheres e da liderança feminina. Porque não era algo óbvio de conseguir, não há precedente de uma convenção paritária” afirma Pía Mundaca, diretora executiva do Espacio Público.
Carolina Carreta [presidenta] da Corporación Humanas[9], disse que, no caso das mulheres, existe a percepção da possibilidade que se representem seus interesses é maior quando há outras mulheres legislando. “Isso obedece ao que temos visto no Congresso. Apesar de ainda ser baixa a porcentagem de mulheres que estão no parlamento, na medida em que [seu número] vai aumentando, também os temas de direitos humanos das mulheres têm sido legislados com mais rapidez. Como os direitos de maternidade, temas de violência de gênero, entre outros”, disse Carreta.
As mulheres chilenas se sentem discriminadas e um dos âmbitos, no qual esse sentimento é maior, é na política. “Se observamos como foi o processo legislativo no Chile, por exemplo, em 1994, quando se legislava pela primeira vez sobre o tema da violência, não ficou tipificada como um delito porque a maioria dos legisladores eram homens e o argumento que apresentavam era que as mulheres iriamos mentir para mandá-los presos sobre a lógica de que ‘as mulheres mentem’. E, anos depois, podemos observar a discussão sobre o aborto em três situações, especificamente no caso de estupro, se volta a apresentar o mesmo argumento”, explica. “Isso obviamente gerou mal estar nas mulheres, que têm se apresentado há muito tempo porque existe a percepção de que este é um país profundamente machista e discriminador no tema de gênero. E isso faz com que agora exista maior consciência da necessidade da presença de mulheres no processo constituinte por um tema de justiça. Logo vem a discussão sobre quais mulheres participam”, disse Carolina.
Sororidade também na Convenção
Segundo Mundaca, a paridade busca corrigir uma sub-representação absoluta que as mulheres têm na discussão pública, entendendo que as mulheres que vão entrar na Convenção devem ser mulheres que, idealmente, pensam diferente. “Mais além do que pensa cada uma, a paridade aponta para assegurar que a metade da população seja parte desse momento histórico. Associá-lo a uma maneira de pensar, ou a um partido é fazer uma caricatura pouco justa da realidade, já que a obrigatoriedade da paridade na Convenção se fez juntando mulheres de visões e partidos muito distintos. Esse é o resultado do esforço de múltiplas organizações, múltiplas mulheres que em outras discussões não necessariamente pensavam da mesma forma, mas que viram nisso um objetivo comum, que é a relevância das mulheres terem igual participação em um momento histórico do país”, disse.
E isso tem a ver com que independente da posição política ou de valores, existem temas que nós, mulheres, sempre vamos nos encontrar, como a violência, a maternidade ou a participação política. “Não creio que exista alguma mulher que não queira que na nova constituição se reconheça o cuidado doméstico das mulheres, que transpassa classes sociais e que é um suporte tremendo que fazemos ao país e que, por sua vez, gera uma economia importante ao Estado; ou frente à diferença salarial, é difícil que alguma acredite que é justo pagar mais a um homem pelo mesmo trabalho”, disse Carolina Carrera.
E acrescenta: “Por isso nos países que levaram a cabo esses processos têm sido bem interessantes como as mulheres de partidos políticos, de organizações sociais, feministas, têm se articulado para acompanhar as mulheres constituintes. É o que se espera desse processo, que esteja representada a maior diversidade de mulheres, que não apenas seja pensado desde a lógica da expertise com as/os advogados, mas sim que tematicamente tenhamos mulheres trabalhadoras de casas particulares, diaristas, que os temas estejam ali. Porque ao final, mais além das diferenças, o que nos une é que todas nós sofremos no sistema patriarcal com uma desigualdade profunda de poderes. Por isso, se conseguirmos que saia esta Convenção Constituinte, vai ser um marco para a história do movimento feminista no Chile”.
Como funcionará o mecanismo da paridade no Chile?
Quando, em março, a Comisión de Constitución de la Cámara Baja aprovou as indicações apresentadas para garantir a paridade de gênero, na prática o que se aprovou foi que em cada distrito, sempre que se apresente um par de candidatos, nenhum gênero poderá superar 50% do total das candidaturas que compõem a lista. Nos distritos onde há um número ímpar de candidaturas, a diferença entre mulheres e homens não pode exceder um. Além disso, as listas de candidaturas dos partidos políticos e os acordos de independentes devem ser encabeçadas por uma mulher e serão ordenadas sucessivamente, de forma alternada, com as candidaturas dos homens.
Não apenas nas candidaturas – como ocorre atualmente nas eleições parlamentares – como também nas pessoas eleitas. A regra de correção paritária é o mecanismo através do qual se assegurará que em cada distrito e, portanto, no órgão nacional, haja paridade. Então, para o caso de um distrito com quatro assentos que forem eleitas 3 ou 4 pessoas do mesmo sexo, deverá se aplicar a correção. Isso se faz identificando dentre elas a pessoa do sexo suprarepresentado menos votada e a substituindo pela pessoa do sexo sub-representado mais votada dentro do mesmo partido, pacto eleitoral ou lista independente.
Isso acontece se a opção eleita no plebiscito for a Convenção Constitucional, ou seja, com 100% de representantes eleitos. Porém, se ganha a opção de Convenção Mista 50% das/dos representantes seriam eleitos diretamente e 50% sairiam do Congresso Nacional. [Nesse caso] as regras de paridade operarão para os 50% eleito, mas não para o 50% de parlamentares, por isso é muito provável que não haja paridade efetiva nesse caso.
Quanto à pesquisa da Ipsos, perguntamos às pessoas sobre os mecanismos para mudar a Constituição e as alternativas possíveis, que são duas – Convenção Constituinte ou Convenção Mista – a porcentagem de conhecimento não foi tão alta como a da que declararam importante a paridade de gênero no processo. Nesse sentido, o desafio é que as demandas e desejos de cidadania se concretizem. É muito potente, evidenciar que a demanda da paridade seja uma concretização, não uma demanda não escutada; podemos ter uma convenção paritária, mas para isso tem que ganhar uma possibilidade de convenção”, explica Pía.
E conclui: “Não gostaria que os homens fossem os porta-vozes de certas causas, entendo que é importante e que existem homens que apoiam as demandas do movimento feminista. Acredito que é crucial que as mulheres sejam parte da Convenção para enfrentar mecanismos sociais que geram desvantagens sociais nas quais elas têm sido vítimas. E as transformações e a inclusão feminina têm que acontecer em todos os âmbitos da sociedade, é muito importante que as mulheres estejam onde estão tomando as decisões”.
[1] Economista da Universidad Católica de Lovaina (Bélgica). Mestrado em economia pela Paris School of Economics (França), com experiência docente universitária em Economia Internacional e econometria. Tem experiência em direção e gestão de projetos, assim como na elaboração, avaliação e implementação de políticas públicas em questões de desenvolvimento econômico e social. Ex-presidenta do Partido Progresista de Chile. Tem apresentado painéis em rádios e outros meios. Foi laureada com o prêmio Mujer Opina 2017, por promover a participação das mulheres nos espaços públicos e na política particularmente. Desde 2017, é Gerente Geral de Filantropia Cortés Solari [2] Escolhi manter o termo em espanhol devido à força presente na flexão de gênero inexistente na palavra correlata em português “nós”. O lema "nunca más sin nosotras" foi adotado pelas mulheres e os movimentos feministas no processo de inserção da questão da paridade de gênero para a Convenção Constitucional. Ver: https://www.clacso.org/pt/nunca-mas-sin-nosotras/ [3] O plebiscito ocorrido em 25 de outubro marcou a vitória da proposta de Convenção Constitucional com votos de 78% do público votante. Ver: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-54689493 [4] Destaques do texto original [5] Disponível para download em https://www.cl.undp.org/content/chile/es/home/library/democratic_governance/mecanismos-de-cambio-constitucional-en-el-mundo.html [6] Instituto de Pesquisa de Opinião e Pesquisa de Mercado. Ver pesquisa: https://www.ipsos.com/es-cl/encuesta-ipsos-espacio-publico-constituyentes [7] Ver: https://www.espaciopublico.cl [8] Ver: https://juntasenaccion.cl/corporacion-humanas-y-observatorio-de-genero-y-equidad-entregan-herramientas-para-la-participacion-de-las-mujeres-en-el-proceso-constituyente/ [9] Ver: http://www.humanas.cl
Traduzido por Flavia Veras