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Traduções: María Galindo

Atualizado: 23 de nov. de 2020


Inverter a dor: um novo amanhecer para a Bolívia


Por María Galindo*


Original disponível em: http://radiodeseo.com/revertir-el-dolor-un-nuevo-amanecer-para-bolivia-la-acera-de-enfrente/



O que aconteceu na Bolívia nas últimas eleições é um mecanismo social extremamente interessante que vale a pena a alegria de compartilhar com vocês. Não importa o lugar onde estejam.


A leitura triunfalista do Movimiento al Socialismo (MAS) e da esquerda internacional [sobre o resultado das eleições] como uma ratificação de seu projeto é uma leitura quase neurótica de autoengano. Também é - no sentido oposto - a leitura dos grupos fascistas derrotados que ainda insistem em denunciar a fraude. Grupos fascistas que passaram de ameaçadores a ridículos.


Suspiro profundamente e ainda sinto entre minhas costelas um corpo não só cansado, mas dolorido: músculo por músculo, cavidade por cavidade, veia por veia. É o corpo da sociedade boliviana.



Diante da cédula não fomos um indivíduo, fomos uma multidão [1]


As cédulas eleitorais têm se transformado em uma espécie de conjunto experimental para ratos de laboratório, que somos nós eleitores. Nosso comportamento é calculado a partir do medo, do ódio, da manipulação da mídia, à base de fakenews em redes e um longo etcétera que faz parte de um dispositivo que é erroneamente denominado "marketing eleitoral".


Ao mesmo tempo, as opções de voto não são o que anunciam - as “formas de representação” políticas de vontades coletivas, programas ou planos de governo - e sim opções dentro de um quadro fechado, no qual seu voto acrescenta ou sobra, mas não conta em si mesmo.


Neste contexto nada pode falhar e cada voto parece ser um voto contra as lutas. Como se estivéssemos diante de um jogo de tabuleiro que não pode ser mudado. Na Bolívia fizemos isso [viramos o jogo] e quero contar como, porque quero acreditar que o mesmo método pode funcionar em outras latitudes. Inclusive nos Estados Unidos contra Trump.


O voto, destinado a ser vazio de conteúdo, adquiriu um sentido - o sentido de veto coletivo - é por isso que afirmo que o MAS não ganhou, ainda que circunstancialmente o MAS apareça como o vencedor. Seu triunfo é uma miragem, porque o conteúdo não é a adesão ao seu projeto, mas sim o veto.


Para que me entendam, transfiro esse raciocínio para outras latitudes, nos Estados Unidos não se está disputando a vitória dos democratas, mas unicamente a derrota de Trump, derrota na qual os democratas se convertem num mecanismo circunstancial.


A multidão reconheceu a si mesma como diferente e distinta da oligarquia; a cédula [eleitoral] nos colocou quase geograficamente entre um “nós” complexo contra um “eles” claramente estabelecido como alheio, como repudiável, como patronal.




O voto deixou de ser voto e se transformou em cartaz com conteúdo próprio


O voto foi um veto ao racismo.

O voto foi um veto à corrupção.

O voto foi um veto à queima do whiphala [2].

O voto foi um veto à extorsão e abuso policial.

Votaram as pessoas mortas pelo coronavírus, porque em seu nome dissemos não.

Votaram as pessoas assassinadas pelo governo de Añez em Senkata e Sacaba, porque em seu nome dissemos não

Votar foi uma forma de expulsar o governo do Palácio e mostrar um repúdio total e generalizado.


Não é que o MAS seja o grande projeto dos povos indígenas; É o partido que limitou a representação política indígena direta e que violou centenas de vezes a política da Constituição do Estado Plurinacional, mas diante do fascismo em uma mesa de laboratório é a saída que escolhemos como paliativa, como transitória, como possibilidade prática, mas não como sonho, não como adesão, isso é bem diferente.


Vocês dirão que estou projetando os meus sentimentos pessoais na massa, a isso respondo que não é assim. Se a massa gigante de mais de 50% dos votos espalhados pelo país fosse uma adesão ao projeto do partido, Evo Morales e Álvaro García Linera não teriam que sair fugindo e não teriam sido derrotados como se esmaga uma mosca contra a parede, como de fato aconteceu em outubro e novembro de 2019.


O voto também se mostrou como um voto-castigo contra todos que foram participantes da construção do governo Añez, por isso perderam Mesa, Camacho e Quiroga e receberam o que popularmente na Bolívia se chama uma surra. Além disso, dois candidatos tiveram que sair das eleições antes de chegar à mesa de votação, porque a sociedade boliviana já havia dado sinais dessa punição, desse veto, desse repúdio coletivo e se retiraram para apagar as provas e não passar humilhação pública.



Inteligência coletiva


Diante da cédula eleitoral não fomos indivíduos, fomos multidão, e essa multidão construiu um gigantesco voto coletivo, uma espécie de grande consenso construído graças ao que se chama inteligência coletiva. As sociedades hiperindustrializadas do norte colonial têm o que se chama inteligência artificial, digo a vocês que aqui no sul desfrutamos do que se chama inteligência coletiva. Essa capacidade de construir um nós efêmero, frágil, instantâneo, mas que por exemplo no evento eleitoral, teve a capacidade de emergir. Uma inteligência coletiva capaz de aparecer em circunstâncias extremas, entender isso é muito importante.


Não é que esteja idealizando a sociedade boliviana, eu a sofro e vivo cada dia. Não é que a inteligência coletiva seja algo tangível que opera continuamente, é mais que o ser humano a tem perdido, assim como estamos perdendo outras formas de percepção e sensibilidade como o instinto e a intuição. Contudo, ainda que essas outras formas de sensibilidade e comportamento estejam perdidas, elas reaparecem em momentos concretos, imagino que reaparecem em momentos de dor, em momentos de extrema pressão. As principais cidades foram militarizadas mais uma vez na noite anterior às eleições e as ruas voltaram a parecer cenários de guerra com tropas em uniforme de combate destacados principalmente nas áreas periféricas, este gesto fascista ativou a inteligência coletiva.



Transformar a dor e convertê-la em outra coisa


Se há algo que eu verifico todos os dias, é a capacidade de transformar as coisas ao contrário. É algo que nós, mulheres, estamos fazendo como um ato diário de insubordinação frente ao patriarcado, como um ato de desobediência à submissão e como um ato de resposta esperançosa e irreverente à negação de nossa liberdade. Essa capacidade de inverter a pressão fascista e transformá-la em seu oposto foi um gigantesco ato coletivo no cenário das eleições bolivianas. Calcularam mal a repressão e o fascismo, calcularam mal o medo. Calcularam mal, porque nos levaram ao extremo, um extremo socialmente lido como o fim de algo. Nesse lugar, a escuridão se transforma em luz e a dor se transforma em rebelião.


Essa capacidade de inverter os sentidos é o que aconteceu na Bolívia em face às cédulas eleitorais. Por isso se abre, por si mesmo, um espaço de sonhos, um espaço de construções e lutas, porque o que aconteceu é uma reapropriação de nossos destinos justamente no momento que parecia que nos havia tirado tudo.

O MAS nesse jogo é apenas uma circunstância.



 Imagens disponíveis da página de facebook do grupo: https://www.facebook.com/MUJERESCREANDO1
Manifestações do grupo Mujeres Creando. https://www.facebook.com/MUJERESCREANDO1

* “María Galindo é uma militante anarcofeminista, psicóloga, locutora de rádio e já foi apresentadora de TV. Fundou o movimento feminista Mujeres Creando na Bolívia, uma associação de mulheres de diferentes identidades sexuais, classes e condições para enfrentar o machismo e a homofobia. Suas ações performáticas chegaram a levá-la diversas vezes à prisão. Autora dos livros: No se puede Descolonizar sin Despatriarcalizar, 2013 e (com Sonia Sánchez); Ninguna mujer nace para puta, Edición ilustrada de Lavaca Editora, 2007. Mujeres Creando é um movimento feminista anarquista que já existe há mais de 20 anos. Reúne mulheres de diferentes setores sociais, diferentes idades, diferentes culturas, diferentes opções sexuais e que se encontram em diferentes momentos existenciais.” Quer saber mais sobre ela e o movimento Mujeres Creando? Veja uma entrevista feita com ela por Alana Moraes, Mariana Patrício e Tatiana Roque disponível em http://revistadr.com.br/posts/maria-galindo


[1] Pego emprestado de Toni Negri o conceito fabuloso que, sem dúvida, transcende a análise de classe em seu sentido mais ortodoxo.


[2] Whipala é a bandeira quadriculada multicolorida usada em todo o continente como a bandeira dos povos indígenas. Essa bandeira foi incorporada na Bolívia como símbolo nacional e até mesmo aderida ao uniforme policial. Durante a derrubada de Evo Morales, um policial encapuzado a tirou da frente da Assembleia Legislativa, queimou-a e também cortou seu uniforme, gestos que permaneceram inscritos como atos de ódio no imaginário social.


Traduzido por Flavia Veras e Sheila Leal

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