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Traduções: Judith Butler


O show finalmente acabou para Donald Trump? [1]


por Judith Butler*


#feministasgringas #mulheresquetraduzemmulheres

Judith Buther - foto disponível em: https://criticaltheory.berkeley.edu/people/judith-butler/


Nunca houve dúvida de que Donald Trump falharia em fazer uma saída cortês e rápida. A única questão para muitos de nós era o quão destrutivo ele se tornaria no decorrer de sua queda. Eu sei que a palavra "queda" geralmente é reservada para reis e tiranos, mas estamos operando nesse teatro, embora aqui o rei seja ao mesmo tempo o palhaço. O homem no poder também é uma criança birrenta sem adultos discerníveis no quarto [2].


Sabemos que Trump tentará fazer de tudo para permanecer no poder, para evitar aquela catástrofe máxima na vida - tornar-se “um perdedor” [3]. Ele mostrou que está disposto a manipular e destruir o sistema eleitoral se for necessário. O que é menos claro é se ele pode fazer o que ameaça ou se a “ameaça” é só um discurso impotente pairando no ar. Como posicionamento, a ameaça de interromper ou anular o voto é uma espécie de espetáculo montado para satisfazer sua base [eleitoral]. Mesmo sendo uma estratégia formalmente legal, uma equipe de advogados, inclusive advogados que trabalham para o governo, entendem que ela constitui um sério perigo para a democracia. Como tantas vezes antes na presidência de Trump, ficamos nos perguntando se ele está blefando, tramando, atuando (como numa performance) ou agindo (causando danos reais). Uma coisa é se posicionar como o tipo de cara que causaria danos incalculáveis ​​à democracia para se manter no poder; outra bem diferente é transformar esse espetáculo em realidade, iniciando processos jurídicos que poderiam desmantelar as normas e leis eleitorais que garantem o direito de voto, atingindo o próprio arcabouço da democracia estadunidense.


Quando fomos às urnas, não estávamos votando em Joe Biden / Kamala Harris (centristas que renegaram os planos financeiros e de saúde mais progressistas de Bernie Sanders e Elizabeth Warren), e sim pela possibilidade de votar em um sentido mais amplo, votar pela presente e futura instituição da democracia eleitoral. Aqueles de nós que não estão inseridos no sistema prisional [4] vivíamos com um senso de que leis eleitorais estavam consolidadas como parte de uma estrutura constitucional que dava direção ao nosso senso político. Muitos daqueles que não haviam sofrido privação de direitos eleitorais antes [do governo Trump] não tinham sequer noção de como suas vidas se ancoravam a uma confiança básica na estrutura legal. Mas a ideia da lei como algo que garante nossos direitos e orienta nossa ação se transformou em um campo de disputa. Não há norma legal que não possa ser contrariada por Trump. Uma lei não existe para ser honrada ou seguida, mas como um lugar de litígio em potencial. O conflito se torna o campo final do poder da lei, e todos os outros tipos de lei, mesmo os direitos constitucionais agora estão reduzidos a itens negociáveis ​​dentro desse campo.


Embora alguns culpem Trump por trazer um modelo empresarial para o governo, sem estabelecer limites sobre o que pode ser negociado para seu lucro, é importante ver que muitos de seus negócios culminaram em processos judiciais (a partir de 2016, ele esteve envolvido em mais de 3.500 ações judiciais). Ele vai ao tribunal para forçar a conclusão que deseja. Quando as leis básicas de apoio à política eleitoral são litigadas, se toda proteção legal é proclamada como fraudulenta, como um instrumento que beneficia aqueles que se opõem a ele, então não sobra nenhuma lei que possa restringir o poder do litígio para destruir as normas democráticas. Quando ele pede o fim da contagem de votos (bem parecido com seu pedido para encerrar os testes da Covid), ele procura impedir que uma realidade se materialize e mantém o controle sobre o que é percebido como verdadeiro ou falso. A única razão pela qual a pandemia é ruim nos Estados Unidos, ele argumenta, é que existem testes que fornecem resultados numéricos. Se não houvesse uma maneira de saber o quão ruim é, então aparentemente não seria ruim.


Na madrugada de 3 de novembro, Trump pediu o fim da contagem dos votos nos principais estados onde temia perder. Se a contagem continuar, Biden pode muito bem ganhar. Para contornar esse resultado, ele deseja interromper a contagem, mesmo que os cidadãos sejam privados de seu direito de fazer a contagem do voto. Nos Estados Unidos, a contagem sempre demorou: esse é o normal. Então, qual é a pressa? Se Trump tivesse certeza de que venceria se a contagem eleitoral parasse agora, poderíamos entender o por quê ele quer pará-la. Mas dado que ele não tem os números eleitorais, por que pararia? Se a ação que interrompe a contagem for acompanhada por uma ação que alega fraude (sem qualquer fundamento conhecido para fazê-lo), então ele pode produzir uma desconfiança no sistema, que, se for profunda o suficiente, acabará por levar a decisão aos tribunais, os tribunais que ele colocou no bolso, aqueles que ele imagina que irão colocá-lo no poder. Os tribunais, junto com o vice-presidente, formariam então um poder plutocrático que decretaria a destruição da política eleitoral como a conhecemos. O problema, entretanto, é que esses poderes, mesmo que geralmente o apoiem, não necessariamente destruirão a Constituição por lealdade a ele.


Alguns de nós estamos chocados por ele estar disposto a ir tão longe, mas esse tem sido seu modo de operar desde o início de sua carreira política. Ainda estamos assustados de ter visto a fragilidade das leis que nos fundamentam [politicamente] e nos orientam como uma democracia. Mas o que sempre foi distintivo do regime de Trump é que o poder executivo do governo constantemente atacou as leis do país, ao mesmo tempo, que afirma representar a lei e a ordem. A única maneira de essa contradição fazer sentido é se a lei e a ordem forem exclusivamente incorporadas por ele. Uma forma peculiarmente contemporânea de narcisismo impulsionado pela mídia, portanto, transforma-se em uma forma letal de tirania. Aquele que representa o regime jurídico assume que é a lei, aquele que faz e infringe a lei como lhe agrada e, como resultado, torna-se um criminoso poderoso em nome da lei.


O fascismo e a tirania assumem muitas formas, como esclareceram os estudiosos. Tendo a discordar daqueles que afirmam que o nacional-socialismo continua sendo o modelo pelo qual todas as outras formas fascistas devem ser identificadas. E embora Trump não seja Hitler e a política eleitoral não seja precisamente uma guerra militar (ainda não uma guerra civil, de toda maneira) há uma lógica geral de destruição que entra em ação quando a queda do tirano parece quase certa. Em março de 1945, quando as forças aliadas e o Exército Vermelho haviam derrotado todas as fortalezas defensivas nazistas, Hitler resolveu destruir a própria nação ordenando a destruição dos sistemas de transporte e comunicação, instalações industriais e serviços públicos. Se ele estava caindo, a nação também estava. A diretiva de Hitler foi chamada de “Demolições do território do Reich”, mas foi lembrada como o “Decreto de Nero”, invocando o imperador romano que matou os familiares e amigos, punindo àqueles que eram considerados desleais, em seu desejo implacável de manter o poder e punir aqueles que eram considerados desleais. Quando seus apoiadores começaram a fugir, Nero tirou a própria vida. Suas supostas últimas palavras: “que artista morre em mim!”.


Trump não foi nem Hitler nem Nero, e sim um péssimo artista que foi recompensado pelos seus apoiadores por suas performances miseráveis. Seu apelo à quase metade do país dependeu do fomento de uma prática que autoriza uma forma empolgada de sadismo, livre de quaisquer grilhões de vergonha moral ou obrigação ética. Esta prática não atingiu totalmente sua liberação perversa. Não apenas mais da metade do país respondeu com repulsa ou rejeição, mas o espetáculo vergonhoso sempre dependeu de uma imagem sombria da esquerda: moralista, punitiva e crítica, repressiva e pronta para privar a população em geral de todo prazer comum e liberdade. Desse modo, a vergonha ocupou um lugar permanente e necessário no cenário Trumpiano, na medida em que foi exteriorizada e fincada na esquerda: a esquerda quer envergonhar você por suas armas, seu racismo, sua agressão sexual, sua xenofobia! A fantasia extasiada de seus partidários era que, com Trump, a vergonha poderia ser superada e eles seriam “libertados” da esquerda e de suas restrições punitivas à fala e conduta, uma permissão para, finalmente, destruir regulamentações ambientais, acordos internacionais, expelir bile de racismo e afirmar abertamente formas persistentes de misoginia. Enquanto Trump fazia campanha para multidões excitadas pela violência racista, ele também prometia proteção contra a ameaça de um regime comunista (Biden?) que redistribuiria sua renda, tiraria sua carne e, eventualmente, instalaria uma mulher negra "monstruosa" e radical como presidente (Harris?).



Foto: Brendan Smialowski/AFP/Getty

O presidente em declínio, porém, declara que ganhou, mas todos sabem que não, pelo menos ainda não. Nem mesmo a Fox aceita sua alegação, e até Pence diz que todos os votos devem ser contados. A espiral descendente do tirano pede o fim do teste, da contagem, da ciência e até do direito eleitoral, de todos aqueles métodos inconvenientes de verificar o que é, e o que não é verdade, a fim de tecer sua verdade mais uma vez. Se ele tiver que perder, ele tentará derrubar a democracia com ele.


Mas quando o presidente se declara vencedor e há risos generalizados e até mesmo seus amigos abandonam o barco, então ele finalmente está sozinho com suas alucinações de si mesmo como um poderoso destruidor. Ele pode brigar o quanto quiser, mas se os advogados se dispersarem e os tribunais, exauridos, não ouvirem mais, ele se verá governando apenas à ilha chamada Trump - como uma mera demonstração da realidade. Podemos finalmente ter a chance de deixar Trump se tornar um espetáculo passageiro de um presidente que, ao tentar destruir as leis que apoiam a democracia, se tornou sua maior ameaça, abrindo caminho para um descanso depois de um esgotamento que parecia interminável. Vá em frente, Sleepy Joe! [5]


* Judith Butler - Mais conhecida por ser uma das principais teóricas contemporâneas do feminismo e teoria queer, Butler atua no campo da filosofia política e ética, bem como em estudos sobre agência política de sujeitos históricos e assembleísmo. Ao longo de sua carreira recebeu diversos prêmios e homenagens Brudner Prize, em Yale (2004); foi eleita membro da American Philosophical Society (2007) e o Theodor W. Adorno Award (2012). Judith Butler é Maxine Elliot professor no Departamento de Literatura Comparada e no Programa de Teoria Crítica da Universidade da Califórnia, Berkeley - também ocupa a cadeira de honra intitulada Hannah Arendt na European Graduate School.



Dentre seus principais livros, podemos destacar:


- Gender trouble: Feminism and the subversion of identity. Nova Iorque: Routledge, 2006. [ed. brasileira: Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003];


- Bodies that matter: On the discursive limits of "sex". Nova Iorque: Routledge, 1993. [ed. brasileira: Corpos que importam: Os limites discursivos do "sexo". Tradução de Verônica Daminelli e Daniel Yago Françoli. São Paulo: N-1 Edições e Crocodilo, 2019];


- The psychic life of power: theories in subjection. Stanford: Stanford University Press, 1997. [ed. brasileira: A vida psíquica do poder: Teorias da sujeição. Tradução de Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica, 2017];


- Precarious life: The powers of mourning and violence. Londres: Verso, 2004. [ed. brasileira: Vida precária: Os poderes do luto e da violência. Tradução de Andreas Lieber. Belo Horizonte: Autêntica, 2019];


- Giving an account of oneself. Nova Iorque: Fordham University Press, 2005. [ed. brasileira: Relatar a si mesmo: Crítica da violência ética. Tradução de Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica, 2015];


- Notes toward a performative theory of assembly. Cambridge: Harvard University Press, 2015. [ed. brasileira: Corpos em aliança e a política das ruas: Notas para uma teoria performativa de assembleia. Tradução de Fernanda Siqueira Miguens. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018].


- The force of nonviolence. New York: Penguin Random House, 2020


Notas

[1] Texto original postado em 05 de Novembro de 2020, disponível em: https://www.theguardian.com/commentisfree/2020/nov/05/donald-trump-is-the-show-over-election-presidency

[2] Um resumo da trajetória controversa de Trump na presidência dos EUA pode ser lida em https://brasil.elpais.com/internacional/2020-11-07/trump-o-perdedor-que-odiava-os-perdedores.html

[3] A autora fez referência a uma das gafes de Trump, quando ele declarou que não tinha motivos para visitar o cemitério Aisne-Marne, onde estão os restos mortais de mais de mil fuzileiros navais estadunidenses mortos na Primeira Guerra Mundial. Nessa ocasião ele disse "por que eu deveria ir àquele cemitério? Está cheio de perderores". Ver https://www.bbc.com/portuguese/internacional-54035426

[4] O contrário do Brasil, em alguns estados dos Estados Unidos a população carcerária não tem direito a voto. Para maiores informações ver: http://g1.globo.com/mundo/eleicoes-nos-eua/2012/noticia/2012/11/quase-6-milhoes-de-ex-condenados-americanos-sao-privados-de-votar.html

[5] "Sleepy Joe" é o nome de uma música escrita por John Carter e Russell Alquist em 1968. E também é o apelido ofensivo que Trump deu a Biden.



Tradução e notas: Sheila Lopes Leal Gonçalves

Revisão e notas: Flávia Veras e Letícia Pereira




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