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Tradução 1: Colômbia, retrato de um país que se levanta



Marina Sardiña*


“Para o povo libertação, para o povo o que é do povo, para o povo a vitória”. [1] Este coro, entoado por milhares de pessoas, ressoou na última quarta-feira (05/05/2021) nas ruas de Bogotá durante uma nova jornada de greves nacionais. Um canto que ao cair da noite se viu sufocado pelo som das bombas de efeito moral lançadas pela polícia para dispersar os manifestantes. [2]


Os protestos contra o governo de Iván Duque reuniram amplos setores da sociedade: jovens estudantes endividados devido aos custos para ingressar na universidade; coletivos feministas que exigem o fim da violência contra mulheres, que aumentou durante o confinamento com mais de 630 casos de feminicídios durante 2020, segundo o Observatorio Independente de Feminicidios de Colombia [3]; o setor médico, que rechaça as privatizações e desigualdades a que levará a iminente reforma da saúde.


A pandemia mostrou que morrer por causa da Covid-19 na Colômbia era cinco vezes mais fácil para as classes baixas e, agora, em plena terceira onda de coronavírus, quando o país se aproxima dos três milhões de pessoas contaminadas e supera a marca de 76.000 mortos, os manifestantes temem mais as políticas governamentais do que a pandemia.


Essas são as imagens do mal estar social durante os oito dias de protestos em todo país latino-americano. Eles foram iniciados no dia 28 de abril para exigir que o governo conservador de Duque eliminasse o projeto de Lei de Solidariedade Sustentável, uma reforma fiscal impulsionada pelo ex-ministro da fazenda Alberto Carrasquilla. Uma vez que a carta foi retirada do congresso “para redigir um novo texto”, ele anunciou sua demissão.


A reforma tributária, que afetaria principalmente as classes médias e baixas do país, reacendeu um conjunto de insatisfações históricas, tanto nacionais, quanto setoriais e locais. “A situação econômica, social e de saúde também se fez presente nas manifestações. Embora tenha começado com uma reforma fiscal, as pessoas estão pedindo muitas outras reformas sociais dada essa acumulação de queixas, abandono, abusos e violações dos direitos humanos por parte da polícia. De alguma maneira as pessoas estão, também, protestando contra o governo”, explica Mauricio Albarracín, subdiretor do Centro de Investigação Colombiano de Justiça.


A onda de protestos abarca o descontentamento com a classe política dirigente e a desconfiança nas instituições públicas. O clamor de milhares de jovens que não se sentem representados nem pelo Governo conservador no poder, que segue a estrela e as diretrizes do ex mandatário Álvaro Uribe Veléz [4], nem pelo principal candidato opositor, o esquerdista Gustavo Petro.


Mas suas vozes também são retratos das carências sociais da segunda nação mais desigual da América Latina. “Antes da pandemia tiveram provavelmente os maiores protestos contra um governo em todo o país.” Relembra Albarracin sobre a greve nacional de novembro de 2019 [5], que perdeu forças devido às restrições impostas pela pandemia.



Reprodução: Reuters


Desde então ocorreram muitas mobilizações, como os protestos contra a violência policial no caso do assassinato do advogado Javier Ordoñez, gravado em vídeo. Um dos distúrbios que deixou dezenas de mortos em enfrentamentos com a polícia de Bogotá. Ou a chegada dos indígenas à Plaza Bolívar para conversar com o presidente, que se negou a sentar com as comunidades para escutar suas demandas. “É certo que durante todo o ano as pessoas têm protestado desde suas casas”, disse Albarracin.


“Para onde se dirige a marcha?”, alguém perguntou a um grupo que se manifestava na quarta. “Para casa, porque nos matam”, respondeu um jovem com uma faixa com os dizeres: “A resistência não é um capricho, é um ato de dignidade”. Mas nas ruas do país também há medo. O temor de não voltar para casa vivo, exacerbado nos últimos dias pela massiva mobilização policial e por mensagens incendiárias do político Álvaro Uribe Vélez, em apoio ao uso da força militar para sufocar os protestos.


O trabalho sujo é feito por centenas de policiais em motos, patrulheiros que chegam ao fim do mês com um salário mínimo colombiano, um pouco mais de 220 euros. “Gente pobre com uniforme matando gente pobre com fome, dirigidos por gente rica sem fome e sem uniforme”, se podia ler em um cartaz. Militares armados patrulham os bairros. É frequente o uso de gás lacrimogêneo ou o acionamento do ESMAD (Esquadrões móveis antidistúrbios) para atacar os manifestantes ou até disparar balas reais, enquanto as autoridades colombianas recebem silenciosamente a condenação internacional.


Já temos mais de vinte e quatro mortos durante as marchas, segundo números oficiais da Denfesoría del Pueblo. Contudo, já se somam trinta e sete segundo denunciam os organismos de direitos humanos. Uma mãe em Ibagué lamenta frente ao corpo imóvel de seu filho: “Leva-me contigo, amor”.


Aos protestos também se uniram camponeses, afro-colombianos das periferias e indígenas dos territórios e das áreas rurais do país. “Queremos avançar sobre a possibilidade de um diálogo entre todos os setores sociais que permitam alcançar a paz. La Minga indígena [6] (uma forma de protesto das comunidades indígenas do país) é um exercício coletivo de pensamento e palavra para tecer uma nova proposta de nação”, diz Giovanny Yuli, ativista político do Consejo Regional del Cauca (CRIC) [7], em Cali, onde se decidiu o apoio às mobilizações e onde se está vivendo os confrontos mais violentos e a maior repressão das forças de segurança contra os manifestantes.


No país mais letal para os defensores da terra, com 64 assassinatos de líderes ambientais em 2019, segundo o último informe da Global Witness [8], eles também tomaram as ruas com bandeiras brancas pedindo paz, depois de mais de três décadas de conflito armado. Considerando os acordos de paz de 2016 com a ex-guerrilha das FARC e o governo do então presidente, Juan Manuel Santos, o conflito se perpetua naqueles territórios onde o Estado apenas tem presença, mas os grupos armados ilegais que marcam a lei.


Como explica o analista de dinâmicas sociais e conflitos, Luis Celis, a sociedade colombiana tem trabalhado pela paz e pela transformação do país: “Mas esse governo não tem tido nenhum interesse em desenvolver os acordos porque o uribismo é a força política que defende essa ordem de exclusões. Esse acordo de paz segue sendo uma tarefa pendente e se soma à insatisfação existente nas ruas”.


Os protestos incluem a insígnia colombiana acenando nas varandas de bairros ricos, panelaços noturnos e velórios para os mortos; delegacias de polícia queimadas e barricadas nas estradas após tumultos que proliferam ao anoitecer. "O governo tem a tática de criminalizar o protesto através da estigmatização das pessoas que saem para se manifestar, o que se torna uma prática comum. Isso visa legitimar o uso excessivo da força pela polícia", critica Alejandro Rodriguez, da organização Temblores, plataforma que registra os abusos e violações de direitos no marco dos protestos.


As atuais mobilizações são também a representação nas praças de todo país, daqueles panos vermelhos que, durante o último ano, eram pendurados nas janelas dos bairros populares sufocados pela crise econômica acentuada pela pandemia. “A sociedade colombiana é uma sociedade profundamente desigual. Temos uma ordem social cheia de exclusões: existe exclusão de terra, exclusão de conhecimento, exclusão do crédito”, aponta Celis.


Mais de 42,5% da população colombiana está em situação de pobreza e 7,5 milhões de pessoas padecem de pobreza extrema, segundo o Departamento Administrativo Nacional de Estadística (DANE). Em uma nação de 50 milhões de habitantes, o trabalho informal representa um 48,7 do mercado de trabalho. “A riqueza na Colômbia se concentrou em poucas mãos, existe uma enorme fragilidade social que em meio da pandemia se expressa como fome”. Continua o analista colombiano.


“O que começou com tom reivindicativo contra o que denominamos “pacote de Duque” vem assumindo dimensões políticas de esgotamento do regime atual, em particular com o uribismo, com a extrema direita”, relata o líder social e político Diego Pinto, que acrescenta que as ruas exigem a renúncia imediata do presidente Iván Duque, cuja aprovação caiu 16 pontos no último mês. Um declínio que se deve em parte à reforma tributária e ao manejo da pandemia, segundo uma pesquisa de Guarumo-EcoAnalítica.


Nesses dias, nos bairros populares preparava-se, em potes comunitários, o tradicional sancocho colombiano, uma sopa feita com os alimentos mais representativos do país: mandioca, banana, batata, milho, coentro, frango e abacate, cozido em uma panela grande ao fogo baixo. Um sancocho também é uma expressão colombiana para chamar uma situação que tem problemas muito diferentes, nem sempre com relação entre si. Essa analogia culinária pode ser a metáfora para as mobilizações massivas que, como a sopa tradicional, foram cozidas em uma panela grande com a pressão que é a Colômbia.


Notas (originais e da tradutora):

[1] Original:“Para el pueblo liberación, para el pueblo lo que es del pueblo, para el pueblo se lo ganó” (nota da tradutora).

[2] Matéria com imagens e vídeos da repressão policial disponível em: https://www.lamarea.com/2021/05/05/continua-sangria-victimas-en-colombia-al-menos-19-manifestantes-muertos/

[3] https://www.lamarea.com/2021/05/05/continua-sangria-victimas-en-colombia-al-menos-19-manifestantes-muertos/

[4] Álvaro Uribe foi presidente da Colômbia entre 2002 e 2010. Reconhecido como conservador, de direita e por se opor ao diálogo com o ex-grupo guerrilheiro FARC. Após o fim do seu mandato presidencial intensos diálogos entre o poder público e os guerrilheiros mostraram um caminho possível para a construção da paz. Esse diálogo foi interrompido por Iván Duque, o que traz muitos problemas para a população pobre e camponesa. Além disso, Uribe respondeu a processo que resultou em prisão domiciliar por sua relação com milícias paramilitares, levando a manipulações, violências e ameaças. As concepções de Álvaro Uribe, em muito inspirando o atual regime e a extrema direita colombiana, ganhou o nome de uribismo (nota da tradutora).

[5] https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-50520302

[6] https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-54625586 (nota da tradutora)

[7] https://www.cric-colombia.org/portal/

[8] https://www.globalwitness.org/es/defending-tomorrow-es/



*Marina Sardiña é jornalista e colaboradora do La Marea. https://twitter.com/marinasardina_


Publicado originalmente em https://www.lamarea.com/2021/05/06/colombia-retrato-de-un-pais-que-se-levanta/


Tradução: Flavia Veras, professora doutora em história e editora da revista Mulheres do Fim do Mundo.


Imagem de capa: Protestas en Colombia. MARINA SARDIÑA, acesso em https://www.lamarea.com/2021/05/16/la-represion-no-consigue-acallar-las-protestas-en-colombia/





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