por Maria Eliza Zahner*

Ruth Klüger nasceu em Viena, Áustria, em 30 de outubro de 1931. Judia, tinha onze anos quando foi enviada, junto com sua mãe, para os campos de concentração nazistas. Juntas, passaram pelo gueto de Theresienstadt e os campos de Auschwitz-Birkenau e Christianstadt. Durante uma das marchas da morte, características das liberações dos campos, conseguiram fugir.
Klüger é mais conhecida na área de História pelo seu livro “Paisagens da Memória”, em que narra suas memórias dos campos e os efeitos da experiência em sua vida. Nele, temas como o luto, o sexismo e sua identidade estão sempre presentes.
Vemos em sua obra passagens que nos levam a reconhecê-la como a mulher a quebrar a imagem clássica do sobrevivente - aquele que tem o campo como ponto de partida de sua vida. É, também, forte opositora à cultura museológica em torno dos campos de concentração. Vejamos, aqui:
A Auschwitz nunca mais voltei e tampouco tenho intenção de fazê-lo nesta vida. Para mim, Auschwitz não é um lugar de peregrinação, um santuário. Poderia vangloriar-me por ter saído de lá com vida, mas quero dizer que Auschwitz não se tornou um lugar de referência para mim, que passei por ali e esse lugar não conseguiu me reter [...] Não pertenço àquele lugar que vi com os olhos, senti com o nariz e temi como nunca, e que hoje existe apenas como museu, e nunca pertenci a ele. Um lugar para os que querem preservar a área.
E, no entanto, esse lugar torna-se para todo aquele que ali sobreviveu uma espécie de lugar de origem. A palavra Auschwitz tem hoje uma grande aura, mesmo que seja negativa, de modo que ela determina em grande medida o que se pensa sobre uma pessoa quando se sabe que ela esteve lá. Também em relação a mim, as pessoas que querem dizer algo importante a meu respeito mencionam que estive em Auschwitz. Mas não é tão simples assim, pois não importa o que vocês possam pensar, não venho de Auschwitz, venho de Viena. Viena não pode ser posta de lado, ela se percebe pela minha linguagem; Auschwitz, porém, era tão estranho para mim quanto a lua. Viena é uma parte de minha estrutura mental e fala através de mim, enquanto Auschwitz foi o lugar mais despropositado onde jamais estive e a lembrança que tenho de lá permanece na alma como um corpo estranho, como um projétil de chumbo que não pode ser extirpado do corpo. Auschwitz foi apenas um acaso monstruoso. (KLÜGER, 2005: 125-126)
Ruth Klüger narra sua vida e assume o controle de sua identidade a partir de sua obra. A escrita é cheia de provocações, em especial aos homens que passaram por sua vida, como:
Anos depois, eu estava casada com um historiador que lecionava história européia em Berkeley: ele chega à era Hitler e lhe pergunto se gostaria que eu falasse a seus alunos, durante uma hora, sobre os campos de concentração. Algo se transforma em seu rosto, uma grade cai diante de seus olhos, ou melhor, uma ponte levadiça se ergue, ouve-se um murmurejo, lá embaixo tem água parada, amarelo-esverdeada, cheia de algas. Ainda quero acrescentar que não sugeri nenhum strip-tease na classe, mas penso ‘não o censure, é um veterano de guerra; esses veteranos representam a vitória do bem sobre o mal’. Éramos como doentes de câncer que lembram às pessoas saudáveis que estas também são mortais. Freqüentemente conta para mim como sentira frio no inverno de 1944-45. Certa vez, me senti compelida a dizer que eu mesma me lembrava muito bem daquele inverno rigoroso sobre o qual ele discorria; porém, sem os bons cobertores, as roupas quentes e as rações generosas das forças americanas, a lembrança era ainda mais viva. Exaltou-se porque eu lhe impunha recordações que competiam com as dele. Aprendi então que as guerras pertencem aos homens. (KLÜGER, 2005: 208-209)
Utilizo suas citações por honra ao que ela pede em “Paisagens da Memória”: poder falar. Durante sua vida, várias vezes recebeu a negação de sua identidade. Era jovem demais para estar nos campos de concentração, era mulher, judia, imigrante... O livro é como se apropria de sua história, através de suas palavras.
Após a fuga dos campos, em 1945, Ruth Klüger e sua mãe, Alma Klüger, se refugiam na Alemanha, onde ficam por dois anos e meio, em Bayern. Depois de terminar seus estudos na Alemanha, migram para os Estados Unidos. Em Nova Iorque, se forma em Literatura Inglesa no Hunter College.
A relação complicada com a mãe faz com que Klüger se mude para a Califórnia, onde se casa, tem dois filhos, se divorcia e retoma seus estudos. Na Universidade da Califórnia, Berkeley, faz seu doutorado em Literatura Germânica e se torna professora universitária. Passa por algumas faculdades, e, em 1980, se torna a primeira mulher do departamento de Estudos Germânicos da Universidade de Princeton. Em 1986, se fixa na Universidade de Irvine, Califórnia, onde se torna professora emérita.
Dentre suas obras não publicadas no Brasil estão “unterwegs verloren – Erinnerungen”, uma segunda autobiografia lançada em 2010, e “Frauen lesen anders” e “was Frauen schreiben”, duas análises sobre os hábitos femininos na Literatura, além de seus trabalhos sobre o poeta Heinrich von Kleist, a quem dedicou sua pesquisa.
Ao longo de sua carreira, Ruth Klüger ganhou diversos prêmios por seu trabalho enquanto autora e crítica, entre eles o Thomas-Mann-Preis, em 1999, e a Goethe Medaille, em 2005, dois importantes prêmios da literatura alemã. Também recebeu, em 2003, o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Göttingen, na Alemanha. Ruth Klüger faleceu em sua casa, em Irvine, Califórnia, no dia 6 de outubro de 2020.
*Maria Eliza Zahner, graduada em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), em 2019. Natural de Petrópolis, se interessa pelas mulheres que querem contar suas histórias. Sua pesquisa, durante a graduação, analisou as identidades de RuthKlüger expostas em seu livro "Paisagens da Memória".
Referências:
KLÜGER, Ruth. Paisagens da Memória: Autobiografia de uma Sobrevivente do Holocausto. São Paulo: Ed. 34, 2005.
KLÜGER, Ruth. unterwegs verloren: Erinnerungen. München: dtv, 2010.
Perfil da Dra Ruth Klüger na Universidade de Irvine, Califórnia, disponível em https://www.faculty.uci.edu/profile.cfm?faculty_id=2565 Acessado em 11/10/2020
Obituário de Ruth Klüger publicado no Washington Post, disponível em https://www.washingtonpost.com/local/obituaries/ruth-kluger-author-of-searing-and-celebrated-holocaust-memoir-dies-at-88/2020/10/09/eeee3b16-0a2a-11eb-9be6-cf25fb429f1a_story.html Acessado em 11/10/2020