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Respeita nossa história: Bárbara de Alencar

Atualizado: 30 de out. de 2021

Por: Flavia Veras*



Bárbara flor do sertão, guerreira do não e do sim. Bárbara mãe de Tristão, avó de Alencar do Guarani. Bárbara olha esse mar, o Dragão desse mar é um Davi. Feito você a lutar pelo dom de lutar pelo porvir...

(Trecho de Glauco Luz. “Flor do sertão”)




Bárbara Pereira de Alencar, ou “Dona Bárbara do Crato” como era chamada pelos seus contemporâneos, nasceu em 11 de fevereiro de 1760 na Cidade de Exu, na Capitania de Pernambuco, em uma família abastada. A casa onde viveu na infância, na Fazenda Caiçara, é hoje um pequeno centro cultural. Ela se casou contra a vontade dos pais aos 21 anos com um comerciante português, quando se mudou para a Cidade do Crato, atualmente sertão do Ceará, mas na época ainda pertencente à província de Pernambuco. Foi mãe dos também rebeldes José Martiniano de Alencar e Tristão de Alencar, avó do famoso escritor José Alencar e tataravó de Raquel de Queiroz. Um livro de pouca circulação comercial, escrito por Juarês Ayres de Alencar - “Dona Bárbara do Crato” - a partir das memórias de família ajuda a manter vivos alguns relatos dessa personagem, posto que muitas fontes históricas relativas a ela foram destruídas.




Apesar dos esforços contemporâneos, sua biografia ainda não é muito conhecida, mesmo no Ceará. Ela foi uma mulher notável em sua época: defensora da liberdade, da república e da causa abolicionista [1]. Era reconhecida como “Inimiga do Rei”. Bárbara foi inspirada por ideias iluministas e lutou contra a ordem política colonial e imperial, liderou resistências que contestavam o poder centralizado no Rio de Janeiro, o autoritarismo da constituição outorgada em 1824 e a exploração financeira das províncias. Ela tinha contatos com pessoas influentes e religiosos, muitos deles ligados à maçonaria na sua terra natal. Conseguiu enviar dois de seus cinco filhos para estudar no Seminário de Olinda, e desempenhou um papel fundamental para conectar as lutas entre as regiões de Pernambuco e Ceará.


Mesmo antes de se tornar viúva, Bárbara cuidava dos negócios da família, no Sítio Pau Seco, à revelia de seu esposo, 30 anos mais velho. Seus negócios encontravam dificuldades frente a um contexto de dificuldades econômicas no Ceará, visto que do Rio de Janeiro chegavam ordens para cobrança de pesados tributos nas províncias e que no sertão a seca dificultava a vida de todos. Respeitada e atuante como uma das mais importantes matriarcas da região, figurava como uma mulher forte do sertão. Por conta de suas ligações com Pernambuco e em acordo com as ideias de seu filho, José Martiniano de Alencar, aos 57 anos teve participação ativa na Revolução de 1817, que começara justamente em Pernambuco. Dessa forma, ela é uma personagem importante para pensarmos as tensões que marcaram o processo político da independência do Brasil, tal como os projetos possíveis de emancipação, em contraste com o monárquico vitorioso. Sobre a incorporação do Crato na Revolução de 1817 descreve-se:




A Igreja Matriz do Crato, no interior do Ceará, estava lotada de fiéis na missa dominical do dia 3 de maio de 1817, festa de Santa Cruz. A matriarca de uma das mais importantes famílias de todo o Nordeste, Bárbara de Alencar, acompanha o sermão ao lado de um público formado, na sua maioria, por pequenos comerciantes semianalfabetos e produtores rurais. Ao fim da cerimônia, um homem vestido de batina sobe ao altar e assume o púlpito de surpresa. Não era um padre. José Martiniano de Alencar, filho caçula de Bárbara, discursa sobre a sofrida realidade do Brasil colonial. Os espectadores aplaudem empolgados e ele manda hastear sua bandeira da independência [2].



Esse evento é corroborado e analisado por Raquel de Queiroz e Heloísa Buarque de Hollanda em “matriarcas do Ceará”. As autoras defendem que “ela (Bárbara) também assumiu o comando do movimento (de 1817), deixando a liderança apenas para que seu filho José Martiniano de Alencar subisse no púlpito em frente à igreja e proclamasse a república na região, a República do Jasmim, nome de uma propriedade sua. Bárbara se viu impossibilitada de fazer a proclamação ela mesma. Não era atitude própria de uma senhora”.


A luta de 1817 foi separatista, ambicionava-se fundar uma república, o que ocorreu na cidade de Crato por apenas seis dias. Embora seu filho tenha tomado a frente do movimento, o reconhecimento público de Bárbara Alencar faz com que muitos digam que ela foi a primeira presidenta que o Brasil teve. Se existe controvérsia sobre sua curta presidência, o título de primeira presa política não é contestado. Vale lembrar que sua prisão por causa política, ou seja, a rebelião contra a ordem monárquica e portuguesa não se sobrepõe à luta de muitas mulheres que se levantaram contra a escravidão e foram penalizadas por isso.


A repressão à República do Crato foi avassaladora. Bárbara e seus filhos foram presos e levados primeiro para Fortaleza, depois para Recife e Salvador. Existem muitas controvérsias e histórias fantasiosas acerca dos três anos de prisão de Bárbara. Há relatos de que ela teria ficado em uma prisão subterrânea em Fortaleza - o que é contestado por historiadores - no Forte Nossa Senhora de Assunção, que é um ponto turístico da Capital cearense não apenas pela história de nossa biografada, mas também por ser um dos marcos fundadores da cidade.




Existem também relatos de que Bárbara, apesar da idade avançada para a época, teria sido torturada, além de pendurada no lombo de um burro com os braços acorrentados pelos dias que duraram a viagem do Crato até Fortaleza. Outro boato corrente é que ela teria escrito um bilhete com seu próprio sangue pedindo ajuda para as pessoas influentes que conhecia em Pernambuco. No entanto, não existe nenhuma fonte material desses relatos. Todos os escritos de Bárbara foram destruídos ainda em 1817, o que favoreceu a defesa da família Alencar, livrando-os da pena capital. Após mais de três anos de prisão, Bárbara foi anistiada. Ao retornar, além da fama de traidora, havia perdido todos os seus bens.


Os contratempos e a idade não impediram que Bárbara participasse de outra revolta, agora com o Brasil já independente e contra Dom Pedro I e seu autoritarismo. Ela tomou parte da Confederação do Equador que explodiu em 1824 em Pernambuco, e que rapidamente se alastrou por outras províncias do Nordeste, entre elas o Ceará. Os rebeldes novamente foram duramente reprimidos e nessa ocasião Bárbara perdeu dois de seus filhos, mortos na guerra. Após a abdicação de D. Pedro I, em 1831, os restauracionistas (grupo que apoiava a monarquia) empreenderam uma forte reação aos revoltosos, que fez com que Bárbara tivesse que fugir. Dessa vez, ela não aguentou a viagem e morreu em 1833 no Piauí.


Atualmente, muitos são os esforços de grupos intelectuais nordestinos e feministas para lembrar da história, da vida e das lutas de Bárbara de Alencar. Centros culturais e medalhas com seu nome foram criadas e uma estátua de Bárbara foi erguida na Praça da Medianeira. Em 2014, seu nome foi inscrito no Livro de Heróis da Pátria e depositado no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves em Brasília. Em 1980, Caetano Ximenes de Aragão publicou um livro-poema “Romanceiro de Bárbara”, que recentemente foi reeditado pela secretaria de cultura do Ceará [3]. Esse verbete será concluído com um poema escrito em 1919 por José Carvalho em homenagem à Bárbara de Alencar e que também fecha o livro anteriormente referido. O poema é aqui reproduzido com a grafia original:



D. BARBARA
Eu, sim, de tudo sei!
Pela primeira vez tal cousa falei
bem constrangida, embora, a tão humilde amiga.
Posso amanhã morrer, mas quero que alguém diga
- mesmo que seja assim do povo um mulher –
que da calumnia vil, sou victima! E siquer
nem dela me poupou a inveja e a negra intriga
de um inimigo tal, a quem seu ódio abriga
a nada respeitar, nem mesmo a honra alheia!
Ser liberal é toda minha macha feia
e pela qual respondo, assim calumniada,
porque succumbirei na fôrca ou fuzilada!
Em paga desse amor á terra que nasci
recebo um premio tal! Dir-se-á que padeci
mas não dirão jamais que a Patria reneguei!
Arrancaram-me tudo: a família que amei,
a honra de mulher; escravos que eu criei
como filhos também; - a fazenda ou riqueza –
mas, do meu coração, não podem, com certeza
arrancar este amor ao meu Brasil querido!
Morrerei satisfeita! Um dia esse Partido
ha de cantar victoria; e meu Paiz, emfim
ha de ser livre, um dia!

Pará – Janeiro – 1919
José Carvalho


Referências e dicas


Fundação Demócrito Rocha. Os Cearenses 2 – Bárbara de Alencarhttps://youtu.be/4ZaDIMYdO4Y


ALENCAR, Juarês Ayres de. Dona Bárbara do Crato, a heroína cearense. Fortaleza, Ceará : Universidade Federal do Ceará, 1972.


ARAÚJO, Ariadne. Bárbara de Alencar. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 2017


GASPAR, Roberto. Bárbara de Alencar: a guerreira do Brasil. Universidade de Indiana, 2001.


HOLLANDA, Heloísa Buarque & QUEIROZ, Rachel. Matriarcas do Ceará. Rio de Janeiro: Papéis Avulsos, UFRJ, n. 24, 1990.


LUNA, Claudia. Bárbara de Alencar e Manuela Sáenz: duas mulheres nas independências latino-americanas. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura, realizado na Universidade de Brasília. Disponível em: https://www.cemhal.org/revista2.pdf


MIRANDA, Ana. Dona Bárbara do Crato - Dona Bárbara foi a primeira presa política na história brasileira” Disponível em https://www20.opovo.com.br/app/colunas/anamiranda/2013/02/23/noticiasanamiranda,3010427/dona-barbara-do-crato.shtml


NUNES, Dimalice. “Conheça Bárbara Pereira de Alencar, a primeira revolucionária do Brasil”. https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/barbara-pereira-de-alencar-primeira-revolucionaria-do-brasil.phtml


PARENTE, Claúdia. Bárbara de Alencar uma guerreira da “legião de sonhadores”. Disponível em: https://revistacontinente.com.br/edicoes/159/barbara-de-alencar--uma-guerreira-da-rlegiao-de-sonhadoresr


Notas


[1] Segundo o livro de ALENCAR, Juarês Ayres de. Dona Bárbara do Crato, a heroína cearense. Fortaleza, Ceará : Universidade Federal do Ceará, 1972.

[2] NUNES, Dimalice. “Conheça Bárbara Pereira de Alencar, a primeira revolucionária do Brasil”. https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/barbara-pereira-de-alencar-primeira-revolucionaria-do-brasil.phtml

[3] Disponível em: http://portal.ceara.pro.br/index.php?option=com_content&view=article&id=33862:1920-heroina-nacional-barbara-de-alencar&catid=472&Itemid=101


* Flavia Veras é editora da Revista MFM, membro do LEHMT-UFRJ e professora no ensino básico.






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