A caixa
Meire Martins *
Você nasceu! Ainda no primeiro dia, te encaixaram em um nome, Fabricaram pra você uma identidade.
Ao observarem seu corpo, te encaixaram em um gênero e de acordo com esse gênero te instruíram como deveria se comportar, brincar, andar.
Você foi crescendo Te encaixaram em uma religião Te disseram quem é Deus ou quem são os Deuses os quais você deveria adorar.
Você foi à escola E lá, em razão da idade te encaixaram em uma série decidiram o que você deveria
estudar, produzir, realizar.
Você cresceu E não se sentiu encaixado, Não conseguiu se ajustar na caixinha que te colocaram. Não se culpe por isso Afinal, não foi você quem escolheu essa caixa Agora que está crescido(a) Pode fazer suas escolhas Encaixar-se onde se sentir bem E você também pode Não se encaixar E tudo bem, Não se penitencie por isso Viva! Viva assim Desencaixadamente feliz! Você é um ser único Tem suas potencialidades Seu próprio ritmo Dance a dança da vida. Peixes não conseguem voar Pássaros não sabem nadar E tudo bem, Imagine como seria entediante o mundo Se a diversidade não existisse.
Imagine se o Sol cismasse de se encaixar E se tornasse do tamanho dos planetas que o circunda, Se resolvesse parar de brilhar Não espalharia mais sua luz a todos os seres, Não aqueceria mais a vida. Assim como o Sol você também tem luz própria E aquece corações Encaixado ou desencaixado Viva! Brilhe para o mundo.
* Meire Martins nasceu em 03 de junho de 1982, na cidade de Guaraciaba do Norte, Ceará. Filha de professora e agricultor, ajudava na lavoura quando criança, mas queria mesmo era ser professora como a mãe. Ainda com 16 anos, começou a lecionar através do projeto Alfabetização Solidária. Nos anos seguintes, já com formação para o exercício do magistério (normal), trabalhou no ensino infantil e primeiras séries do fundamental na escola municipal do sítio onde morava. Em 2005 concluiu o curso de Licenciatura Plena em História e Geografia pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), em Sobral (CE). No mesmo ano, mudou-se para o Rio de Janeiro em busca de melhores oportunidades de trabalho, onde reside até os dias atuais. Casada desde 2007 com um conterrâneo que conheceu no Rio, tem um filho com ele. Recentemente, concluiu pós-graduação em História do Brasil contemporâneo pela Universidade Estácio de Sá. Inspirada na literatura de cordel que cresceu ouvindo seus familiares recitarem, escreve poemas nas horas vagas.
Acorrentada
Sentada na cadeira da ilusão
De quando em quando
Mastigando com os pés
Os dias
Lá vai ela acorrentada
Segue olhando pro chão
Pedindo desculpas
Por incomodar passando ali
Em qualquer lugar
Lá vai ela acorrentada
Nem saber os laços que lhe amarram sabe
Nem as grades que lhe cercam
Nem a escravidão em que vive
Lá vai ela acorrentada
Imune à dor da consciência
Imune à certeza de si
Protegida da realidade
Envolta a tudo que lhe definem como sendo certo
Bom
Verdadeiro
Embriagada de opiniões alheias
Lá vai ela acorrentada
Se soubesse
Se visse
Se descobrisse
Se
Ah, se!
Se um dia acordasse
Se libertaria
Mas enquanto não acorda
Lá vai ela acorrentada.
* JeovâniaP. é poeta e professora. Formada em Filosofia e Letras Língua Portuguesa pela UFPB, especialista em Educação Interdisciplinar pela UEPB, mestre em Filosofia pela UFPB. Atualmente é aluna especial no programa de doutorado em Letras da UFPB. Em 2016, lançou “Palavras Poéticas” pela editora Ixtlan. Já em 2019, lançou os livros de poesia: “Poeticamente Entre Versos & Bocas”, pela editora Ixtlan e “A-M-O-R”, pela editora Sangre Editorial, e o livro de contos “Quem abriu a boca da pedra”, pela editora popular Vernas Abiertas. Também idealizou, organizou e lançou a coletânea de poesias e contos “O Livro das Marias”, pela editora Ixtlan. Foi selecionada no edital de obras poéticas da UFPB, em 2019, com a obra “Re[s][x]istência”, que está para a ser lançada em 2020 pela editora da UFPB. Já em 2020, organizou e lançou a coletânea de poesias, contos e crônicas “Escritura Negras_ A Mulher que Reluz em Mim”. Atualmente organiza a coletânea “O Livro das Marias II”.
s/ título
Maria Helena Miranda*
Gostaria imenso de escrever algo de positivo
Alguma coisa que desse, a alguém, uma esperança
Gostaria, enfim, de ter essa esperança
De acreditar que haverá vida daqui pra frente
Vida de verdade, vida vivida.
Gostaria de poder me imaginar feliz
Gostaria de pensar que não é pura alienação
Quando vejo pessoas “felizes”
Gostaria de acreditar que alguém é ou foi feliz.
Gostaria de não ter tantas dúvidas
E de, não podendo viver melhor,
Deixar-me passar sem grandes questionamentos
E acabar...
(14 de março de 1983)
* Maria Helena Miranda, quase 66 anos, aposentada (não da vida), apesar de tudo, insistindo na esperança.
A louça
Maria Cristina Martins *
organizo a louça quando todos dormem
guardo o que não é utilizado no dia a dia
deixo à mão apenas o necessário
minha avó sempre lavava e enxugava a louça
antes de guardar toda a louça no armário
minha mãe enxuga só o que vai para o armário
eu não enxugo nada
espero secar naturalmente
o tempo certo de secar é o que vai
do fim do jantar à hora em que todos dormem
* Maria Cristina Martins é escritora, jornalista e revisora, atividade que exerce no Arquivo Nacional. Formou-se também em história, participou da coletânea de contos sobre violência e sexualidade do Observatório de Favelas, em 2005, e publicou o livro de poemas "ovos de ferro" pela editora 7letras. Em breve lançará o livro de contos e crônicas "Entre máscaras: histórias do interlúdio", em coautoria, pela editora Urutau. Tem publicado também em revistas, coletâneas e no instagram @farandola.mariacristinamartins.
Enola Holmes: uma detetive nada feminista
Tássia Veríssimo*
Meu primeiro contato com histórias de detetive foi através de Agatha Christie, seus livros vendidos a preço baixo nas Lojas Americanas do bairro suburbano em que eu morava na infância, já que não tínhamos livrarias por lá à época. Depois passei a Sherlock Holmes, com seus desdobramentos em séries e filmes e outras produções do gênero. Digo isto para situar à leitora que não foi sem empolgação que fiquei sabendo de Enola Holmes, o novo filme queridinho da Netflix.
Pelo contrário! Quando ouvi falar de uma nova história de detetive tendo como protagonista a irmã mais nova de Sherlock me empolguei. O fato de não ser cânone não é um problema para mim, muito menos de se tratar de uma história para adolescentes, apesar de não ser tão ligada a este universo. Fui assistir de coração aberto ao filme sobre o qual tantas conhecidas estavam falando muito bem, afinal parecia uma grande aventura feminista!
A expectativa é a mãe da decepção, eu sei, mas nada havia me preparado para aquela bomba em forma de filme! A história começa com Enola Holmes (Millie Bobby Brown) se apresentando ao espectador, num já clássico caso de quebra de quarta parede. Esse recurso, quando bem empregado, é muito bom para gerar conexão com o espectador, mas nesse filme ele é tão explorado que se esvazia de sentido. Enola fala com a gente o tempo todo e explica cada cena que está acontecendo, o que fica ainda mais didático com os flashbacks de reforço de explicação que cismam em tomar a cena.
É como se o espectador não fosse capaz de entender algo que não lhe fosse mostrado ao menos de três maneiras diferentes ao mesmo tempo. Eu acredito que os adolescentes – público-alvo da produção – tenham total capacidade de entender uma história sem tanta mastigação. Enola interage com a gente até no clímax do filme, tirando qualquer possibilidade de nos emocionarmos com a cena.
A produção também consegue a proeza de ser muito agitada – num sentido ruim de os fatos se atropelarem sem desenvolvimento – ao mesmo tempo em parece que suas duas horas de duração se arrastam pela tela. Também não espere desenvolvimento das personagens ou uma história de detetive de fato. Praticamente todas as personagens parecem ter motivos fúteis ou mal explicados para suas ações e nem a tentativa de transformar a mãe da protagonista em rebelde funciona. Sem uma boa trama ela soa muito mais como uma mãe relapsa e egoísta do que como uma feminista que quer um mundo melhor para a filha.
Aliás, o que mais me incomoda nesta obra é ter sido alçada como feminista nas resenhas que pipocam no Instagram. Não fosse isso seria apenas um filme ruim, como tantos outros. Mas se vender como “girl power” foi abuso! As personagens femininas são pouco interessantes, não há quase conexão ou diálogo entre elas e quando existe alguma oportunidade de união é descartada em prol de um “algo maior” que nunca se concretiza. Que mulher adulta fala para a filha da amiga desaparecida se virar sozinha aos 16 anos em Londres enquanto foge dos irmãos?
E é exatamente essa personagem, chamada Edith (Susie Wokoma), que tem sido usada como símbolo feminista por uma cena em que escancara os privilégios de gênero de Sherlock. Sinceramente? Achei que já tínhamos entendido que lacração não muda o mundo e muito mais válidos são os gestos que as palavras.
Enola parte em sua aventura ao fugir do irmão mais velho que a quer em um internato uma vez que a mãe deles achou de bom tom sumir no aniversário da menina e deixar apenas uns recados cifrados. Apesar da premissa fraca – a mãe é pintada como maravilhosa e do nada vai embora? – a história poderia ter se desenvolvido de maneira interessante, com Enola tendo contato com outras mulheres e com o movimento sufragista e a luta operária. Poderia ser sobre se descobrir uma mulher num mundo de homens e as implicações disso, mas optaram pelo caminho fácil de colocá-la para se fantasiar de menino – sem necessidade -, para não interagir com mulheres de forma solidária, para abrir mão de sua fuga por causa de um interesse romântico e por aí vai. Enola é supostamente independente, mas suas ações são quase todas realizadas ou em oposição ou por meio de autorização masculina.
A cena da fuga do internato, por exemplo, poderia ter sido realizada por ela sozinha, mas só se deu após a visita do irmão e do par romântico. A busca pela mãe ficou em segundo plano, com ela retornando ao final, com uma desculpa mais esfarrapada que pano de chão após meses de uso em faxina pesada. A verdade é que nem a mais feminista das espectadoras consegue se conectar emocionalmente à mãe de Enola e suas motivações.
O filme pode até ser bem intencionado em sua vontade de mostrar que mulheres devem ser livres, mas nossas meninas merecem uma obra que as apresentem a um feminismo que vai além de tiradas de efeito e golpes de Jiu-Jitsu. O feminismo liberal de Enola Holmes é tão bom quanto qualquer propaganda de empoderamento usada para vender batom. O mercado agradece.
* Tássia Veríssimo é escritora desde antes de saber escrever. Uma carioca amante dos pinguins e dos abraços apertados. Produtora editorial (UFRJ) e mestra em literatura brasileira (Uerj), é coautora do livro Entre máscaras: histórias do interlúdio, escreve para o jornal Sul Fluminense Notícias e possui a marca de moda poética Insones Poemas (@insonespoemas).