HERANÇA
Maria Cristina Martins*
Na aldeia em que meu pai nasceu
em Portugal
os homens podiam bater nas mulheres
Depois soube que
em mais lugares
os homens podem bater nas mulheres
Depois soube que o corpo de Carmem
sangrou pelo amor de José
e Capitu é um tabu
e que Luísa, Gabriela, Madalena, Solange
Ana, Karenina e de Assis
Desdêmona, Eurídice, Emma, Constance
quase todas irreais e tão reais
eram culpadas
mesmo quando inocentes.
Culpadas de quê exatamente?
Depois soube que era pior
com as mulheres mais pobres
com as mulheres negras
com as mulheres cujos corpos
nasciam para servir
um país inteiro.
Depois soube que não era amor,
que as mulheres eram alienadas
do seu próprio corpo,
que a culpa era uma roupa feminina
costurada por homens.
*Maria Cristina Martins é escritora, jornalista e revisora, atividade que exerce no Arquivo Nacional. Dançarina de flamenco amadora, pintora pré-amadora, protomilitante de esquerda e amante de programas de humor, ainda sobra tempo pra ser mãe do Vinícius, de um ano, e dominada por Emma, a canina, e Dindi, a felina. Formou-se também em história e fez pós-graduação lato senso a distância pela UnB em Políticas Públicas de Cultura - Patrimônio. Participou da coletânea de contos sobre violência e sexualidade do Observatório de Favelas em 2005 e publicou o (ainda) único livro de poemas "ovos de ferro" pela editora 7letras.
NO RASTRO DE UM PÁSSARO
Bianca Vilhena*
O corpo mente. Sinto aproximar a data em que a irrealidade deste ar terá que ganhar corpo. Agora é apenas desânimo, mas a vida não espera, e eu finjo que não espero nada dela. Meu sangue desce forte, e este parto mal feito de que sofro por não conseguir fazer. Ando sofrendo porque ando não fazendo, não conseguindo fazer. Parece que ao invés do parto necessário, o luto desnecessário, para não dizer impossível, tomou conta de tudo. Sangue negro que não deixa mais que as janelas se abram. Mas até que me sinto bem dentro das minhas quatro paredes. Mudei-me para uma rua chamada Mundo Novo. Mesmo que este mundo novo não nasça, peço para que apenas não morra. E mantenho-me firme, apesar de às vezes manca, em olhar apenas de esguelha da janela. Memórias são como pássaros velozes, que se chocam entre si. E eu só vejo as sombras projetadas na parede em frente. Gostaria de poder chamá-los para a minha gaiola, amansá-los, mostrar que também sangro. Por um instante esqueço que eles são apenas sombras. Enquanto as sombras dançam, o meu corpo mente. Não pode abraçar o mundo, mal abro a portinhola da gaiola. Uma hora dessas, esse parto imenso sairá voando por aí e poderei abraçar meu pranto, mostrar para todos os sorrisos que amo o meu pássaro novo, que nasceu hoje. E que um dia irá morrer.
*Bianca Vilhena é carioca, urbana, mas amante do contato com a natureza e tudo o que é mais primordial. Fez geografia como primeira graduação e depois seguiu academicamente com a filosofia. Escreveu uma tese sobre os sonhos em Platão, ama poesia, música e as artes em geral.
REUNIÃO
Tássia Veríssimo*
Na biografia de Rosa Luxemburgo
Paul Frölich fala que
aqueles homens velhos
não conseguiam tolerar a fala firme de uma mulher
Mais de século depois
homens velhos (ou não)
seguem não tolerando mulheres que falam forte
Bocas e pernas abertas apenas se for para o prazer (deles)
Nos querem submissas
As que se posicionam são como moscas que incomodam na sopa dos privilégios
Pinschers nos calcanhares do patriarcado
Indóceis
Sejamos.
* Tássia Veríssimo é escritora desde antes de saber escrever. Uma carioca amante dos pinguins e dos abraços apertados. Produtora editorial (UFRJ) e mestra em literatura brasileira (Uerj), é coautora do livro Entre máscaras: histórias do interlúdio, escreve para o jornal Sul Fluminense Notícias e possui a marca de moda poética Insones Poemas (@insonespoemas).
COISAS DE MENINO E COISAS DE MENINA Ana Lima*

Uma vez por semana faço terapia. Psicanálise. Recomendo. Só acho que o nome poderia ser “Redescobrimento de si”, acho mais apropriado. Como não podemos nos arriscar nesta pandemia, já que tenho que pegar trem e metrô até chegar lá, fazer minhas pobres orelhas aguentarem vários elásticos, trocados assim que as duas máscaras suam, não posso ser insensível com minhas orelhas (daqui a pouco estarão tortas) e não lhes dar uns momentos de diversão e prazer.
Então, depois da sessão, fui fazer o que me era proibido por não ser “algo de menina”: andar de bicicleta. Parece mentira, mas infelizmente é verdade. Maldito machismo que não perdoa nem as meninas de pouca idade... Infelizmente, sempre fui muito obediente, mas me orgulho dos meus poucos atos de “rebeldia” e, um deles, foi aprender a andar de bicicleta escondido quando criança. Depois parei de andar. Fui reaprender ano passado, aos 32.
Aqui no Rio, tem uma organização voluntária maravilhosa chamada Bike Anjo Rio. O meu anjo foi o Moisés. Em cerca de 30 minutos, reaprendi. Acho que o tempo voltou e me senti com uns 5 anos de novo.
Depois das maravilhosas voltas prazerosas, tomei uma água e polpa de coco, sentei no deque da Lagoa, olhando a contradição da água suja e transparente ao mesmo tempo, olhando as algas, enquanto parecia que o deque se movia. Que sensação maravilhosa...
Sentei numa poltrona maravilhosa de madeira e fui ler Drummond de frente pra aquela vista linda, entre gargalhadas solitárias e sustos de uma ave – que suponho que se tivesse que torcer para um time, ela seria flamenguista: era toda preta e a cabeça, vermelha. Bonita. Ganhou um “tchau” de uma criança quando ele foi embora.
Mas eu queria discordar de Drummond (com todo respeito, de verdade, não aquele respeito que se diz antes de se dizer algo totalmente desprovido de respeito). Juro que não é despeito por eu não ter podido sentar na cadeira 04 (acho), que Drummond usava na Biblioteca Nacional..., mas de que vale jurar?... Ele disse:
“Pois namorar é destino dos humanos,
destino que regula
nossa dor, nossa doação, nosso inferno gozoso.
E quem vive, atenção:
cumpra sua obrigação de namorar,
sob pena de viver apenas na aparência.”
Discordo, pois entendi que não se precisa do “outro” para ser feliz. Não é uma obrigação. Acho que primeiro temos que aprender a “namorar” a nós mesmos, a saber curtir nossa companhia, estar feliz consigo, sem “necessidade” do outro. Que venha como complemento, não como necessidade. Quem acha que precisa de alguém pra ser feliz, pobre dessa pessoa...
E voltando à psicanálise, digo, ao redescobrimento de si, concordo com Drummond em seu outro poema, quando diz que, em suas viagens, nós, em nossa necessidade de quer algo novo e explorar e conhecer novos espaços, fala de uns astronautas que, entediados da Terra, decidiram humanizar a Lua, mas se entediaram depois de um tempo lá. Foram à Marte, idem. O mesmo com Vênus, Júpiter, os outros planetas e até com o Sol se entediaram. Depois foram colonizar outros sistemas fora do solar. Acabaram as viagens. Restava apenas
“a dificílima dangerosíssima viagem
de si a si mesmo:
pôr o pé no chão
do seu coração
experimentar
colonizar
civilizar
humanizar
o homem
descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
a perene, insuspeitada alegria
de con-viver.”
Redescobrir a si é libertador... Suponho que esses astronautas fugiam de si... Tomara que tenham se encontrado...
*Ana Paula Gomes de Lima é assistente social trabalhando na UFRJ, faço doutorado em Serviço Social na UFRJ, tenho 33 anos, divorciada, solteira, sem filhos, amo poesia, trilhas e rir de coisas idiotas kkk, moro em Duque de Caxias .