#Literatura #Poesia #Conto #Fotografia
A HISTÓRIA DO GOZO
Sheila Lopes Leal Gonçalves*
Parte III
Na terapia
É incrível como a Baía de Guanabara é ainda mais bonita vista de Niterói, né?! Quer dizer, daqui também é lindo, mas sei lá... Mas esse não é o ponto. Não, eu não vou ficar falando daqui da janela. É que tem um tempo que eu não vinha aqui... tinha esquecido como é bonito. Bom, pouco importa a paisagem quando o gozo da transa matinal escorre pelas suas pernas e você só pensa em como começar a conversa que vai vetar aquele sêmen àquela e qualquer outra parte do seu corpo. Né?! Quer dizer... especialmente se foi uma boa transa. Tô aqui falando em paisagem, pensado na vista da varanda da casa dele, mas podia ter sido em Bangu, Botafogo, Paris, daria no mesmo. Mentira. Passada em Paris, a história teria esse charme que a gente gosta de dar ao estrangeiro. Ah, Dr. Lacerda, você me pediu pra ir direto ao ponto e agora quer preâmbulos.
Eu queria terminar, então terminamos. Tá. Eu queria só conversar, terminar, ganhar uma declaração de amor beeeeeem brega e aí, de repente reatar, isso num espaço de duas horas, com direito a cachaça. Não, Dr. Lacerda, não se trata de projetar minhas ficções... Eu só fiz um plano... Todo mundo faz planos, milhares deles, cotidianamente. Mas então, eu tava segura em relação a isso, à minha decisão de terminar o namoro. Como assim, eu não queria terminar?! Pois se eu tinha preparado a roupa pra ocasião, o rímel, o delineador, o discurso “te-amo-mas-tô-confusa”, tudo! Eu não crio “uma realidade paralela na qual as coisas são resolvidas através de conflito e drama”! Eu hein. Achei que seus “diagnósticos” vinham depois do meu relato. Eu não estou sendo sarcástica, nem tô negando porra nenhuma. Ok... continuando.
É...
Eu...
Ah, sei lá se eu ainda quero falar disso, dele, da vida. Tenho uma infinidade de trabalho atrasado... e.... Num sei. Pois é, né, eu deveria gastar a grana dessa hora fazendo o cabelo. E por que te parece importante que eu fale sobre isso? Sério, Dr. Lacerda! Engraçado que eu nunca reparei que fico suspirando quando tô preocupada... Será? Tá.
Quando eu saí da casa dele só pensava que eu tinha levado meu primeiro pé na bunda, que eu tinha sido, de certa forma, humilhada, que eu tinha dito um monte de desaforos descabidos de mulher recalcada e que o Rio fica tão lindo nublado. Agora que já passou um tempo, vejo que os desaforos não eram tão descabidos, que de fato eu queria manter um namorado, não ele, especificamente ele, o Homem H.
É sério. Tá.
Eu levei umas 13 horas pra chegar na casa dele. Ah, carro quebrado, mecânico gato, divagações sobre uma geração que não consegue se encaixar profissionalmente nem se engajar politicamente, uma queimadura na mão e muita revisão dos argumentos pró e contra o namoro. Mas porra, é só um namoro... Dr. Lacerda, você acha isso mesmo?... Ah, isso não deveria tomar tanto tempo na minha vida, na vida de ninguém... O marcante mesmo, o impacto da coisa tava no gozo que escorria. Quer dizer.... de repente eu nem estaria aqui dando tanta atenção a isso se... Ah... Tá.
Parte final na próxima edição...
*Sheila Lopes Leal Gonçalves - É editora da Revista Mulheres do Fim do Mundo, doutora em História, professora, amante da autoanálise e, nas horas vagas, sonha em ser escritora. Instagram: @leal.sheila | twitter: @sheilalopesleal
À BORDA DO COGITO
Gabriela Mitidieri*
Inominável
Sou rosto em construção,
Penso, logo me desloco (de mim)
El placer de vivir en déplacement
Criatura das margens
Atraída pelos cantos
e vozes de es-quinas
Dança de serpente
Deslizo pelas beiras
Desprovida de centro
protocolo&disciplina
sou jazz do coração
pela estrada à toda
Não gosto do bom gosto
dos bons modos
nem das grandes religiões
Gosto dos que têm fome
e comem tabus à boca pequena
traça de papéis sociais
Criatura de mar y viento
raiz submarina
Evadi-me na nau das loucas,
com Judiths, Genis e Sherazades
(por todas que não têm nome)
Pai, Pátria, Família, Propriedade
Maiúsculos não cabem na minha bagagem
Meio, jamais fim
Sendo, jamais sou
margem da palavra
F(r)esta
você não me pega
você nem chega a me ver.
*Gabriela Mitidieri é doutora em história com ascendente em antropologia, professora de francês em formação e editora da Revista Mulheres do Fim do Mundo. Mambembe, gosta de blues, de circo e de Caetano. Como ele (com trocadilho) também gosta de paçoca, mas nunca estacionou no Leblon (nada contra, tem até amigxs que). Instagram: @gabimitidieri86 | Twitter: @Gabi_Mitidieri
(SEM TÍTULO)
Lya*
Em pele cor de terra
Curvas férteis, precipícios,
Rachaduras e cicatrizes Desenham meu r-existir
Faça um mapa pra me decifrar
Desbrave matas pra me descobrir
Suba montanhas pra me alcançar
Pois não vou me apequenar
Pra te manter aqui
Me poupe da sua posse Meu decote não é convite
Meu colo não é colônia
Meu corpo é terra de ninguém
Minha alma é de alforria
Das memórias ancestrais sou moradia.
*Lya - Seguindo a burocrática cartilha do brazilian way of life, Lya estudou na Faculdade Nacional de Direito (FND/UFRJ) e tentou levar uma vida perfeitinha, até sua decepção com o Supremo, com tudo, levá-la a escrever suas próprias leis. Servidora pública concursada do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, posto que cringe deve pagar seus boletos, é carnavalesca clandestina e serva do verso, condenada por cometer poemas triplamente qualificados. Aquariana com coração (vermelho hei hei hei), rebelde com causas, extrovertímida, do axé, Oxum e Xangô, ela respira amor, aspirando liberdade, enquanto leva caldos de relações líquidas. Maratonista de festivais de rock, sommelier de filmes e séries, membra da Academia Brasileira de Comentaristas da internet e campeã olímpica de saltos ornamentais em delírios comunistas. Instagram: @0lhosderessaca
(SEM TÍTULO)
Maria Helena Miranda*
E fiquei eu
Naquele canto, só,
Esperando o momento
(o teto estava por desabar)
Caíam algumas telhas
Caíam algumas madeiras
Mas a estrutura ainda se mantinha e me mantinha
(aos pedaços)
Até que, de repente, tudo ruiu.
E, junto aos escombros,
Sem nada que nos cobrisse, sem proteção
Levantamos, eu e a minha história,
Com a sensação ímpar de liberdade plena.
E fui...
*Maria Helena Miranda - Quase 66 anos, aposentada (não da vida), apesar de tudo, insistindo na esperança.



*Taiane Cerqueira - Fotógrafa, poetisa, comunicóloga em formação e criadora da Olhos da Preta. Ela conta a história da singularidade do ser através da fotografia e de poemas que são escritos partindo do que ela sente durante o processo criativo de cada imagem. É o que faz o seu coração vibrar. São experiências lindas de muita conexão e cuidado, para que você se veja e se sinta na sua melhor versão. Apaixonada pela arte de comunicar, ela traz e ensina a importância do autorretrato como mergulho, autoconhecimento e narrativa de si. Instagram: @olhosdapreta