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Em Meio à Névoa
Ana Paula Maciel Vilela*

Quando o carro estacionou em frente ao número seiscentos e trinta e oito, sentia-me com a boca seca, o coração em sobressalto.
Ela havia sido uma mulher independente, trabalhava e estudava à noite quando os filhos eram pequenos e algo que não suportava era a preguiça e má vontade de algumas pessoas. Incentivava as mulheres conhecidas e as filhas a serem independentes, terem seu próprio sustento e não dependerem de homem algum.
Em mim a baixa autoestima e excesso de cobrança foram crescendo na proporção de sua falta de paciência quando, no final da noite, ao chegar cansada da faculdade, lá estava eu aguardando, com o caderno de matemática nas mãos suadas, já no prenúncio do que aconteceria.
Paguei o motorista do táxi, atravessei a mureta baixa e alcancei o pequeno alpendre ladeado por um jardim que há muito perdera seu encanto.
Sentada em frente à televisão, minha mãe não se virou quando entrei, apenas fez um sinal com a mão pedindo silêncio quando lhe desejei bom dia.
A doença chegou sorrateira e muito camuflada com a falta de atenção que lhe era peculiar e por um período me agarrei a essa esperança de que os sinais que presenciávamos não seriam nada sério.
Em cada aposento da velha casa, memórias cravadas nas paredes, no piso, nas telhas.
A água fresca do filtro de barro parecia evaporar em contato com a sequidão na qual me transformara.
Quando me sentei a seu lado durante o café da tarde, alisava o crochê largo que enfeitava a toalha estampada e elogiava a amiga que a havia presenteado e que falecera há alguns anos. Disse que encomendaria uma para mim. Em instantes foi envolvida em um silêncio profundo. Quando a convidei para caminharmos no quintal, com o cenho franzido, me perguntou quem eu era.
Procurando abstrair da dor que me machucava quando a percebia tão longe e envolta naquela densa névoa, caminhei pelas trilhas e lembranças de cheiros, risadas e cores invadiram o entardecer. Sentei-me no banco. Esperei.
Ao retornar para a casa e entrar pela porta da cozinha, a encontrei: surpreendida pelo sorriso largo e olhos brilhantes, me chamou pelo apelido carinhoso da infância, estendendo para mim os braços abertos.
A névoa dissipou-se por alguns momentos.
Me perdi e quis ficar indefinidamente dentro daquele abraço.
*Ana Paula Maciel Vilela nasceu em Ituiutaba, Triângulo Mineiro, e foi moldada com finais de semana na fazenda até sua adolescência, andando pelo mato, conversando com plantas e bichos; hábito enraizado que persiste ainda hoje. Com um amor de companheiro há 40 anos, tem um casal de filhos, Carolina e Gabriel, mora em Belo Horizonte e escolheu ser fisioterapeuta para cuidar de pessoas, mas bem que poderia ser bióloga, agrônoma, psicóloga, nutricionista e mais alguma coisa. Adora ficar em casa, cozinhar, ler, escrever, bordar, cuidar das plantas, deitar na rede e conversar com Lucky, o cachorro que adotou a família.
Acontece…
[Segundo texto da série "Amanheceu"]
Maria Helena Miranda*
Já estou acostumada a ser ignorada...
Nas ruas, por onde quer que passemos, pessoas vão apressadas, sem perceber presenças a seu lado.
Algumas vezes acontece de sermos olhados de uma maneira inexplicável, isto é, sem nenhum motivo evidente, pessoas lançam-nos um certo olhar de raiva, revolta, sei lá...
É terrível, mas a gente se acostuma também com isso: “a gente se acostuma com tudo”...
Ontem, porém, algo de diferente aconteceu.
Ao sair do cinema (e lamentavelmente não estava sozinha – poderei depois justificar esta observação) fui parada por um homem descalço, roupas rasgadas, um mendigo. Pediu-me um cigarro, até aí nada de novo. Mas e o olhar? Há quanto tempo não sinto tanto carinho no olhar de um estranho? Observei-o por alguns minutos enquanto acendia o seu cigarro (e o fiz lentamente). Ele nada disse, limitou-se a um gesto com a mão e novamente o olhar...
Estranho, mas senti vontade de permanecer um pouco mais ali, senti uma vontade louca (louca?) de conversar, de saber o que era a vida para aquele homem, de entender o porquê daquele olhar carinhoso quando sua vida...
Mas não estava sozinha, assim sendo não poderia levar adiante a ideia que me veio à cabeça. Mas levaria adiante essa ideia, se estivesse só? Não sei, a gente se reprime tanto... A gente se conserva ainda tão presa a tantas coisas bobas.
O fato é que ainda hoje penso nesse homem, penso sem entender bem.
Não lembro direito do seu rosto; mas sua maneira de olhar, dessa eu me recordo perfeitamente.
O sábado não foi vazio...
Novembro de 1978
*Maria Helena, quase 66 anos, aposentada (não da vida), apesar de tudo, insistindo na esperança.
Puerpério
Maria Cristina Martins*
comprou uma caneta preta
com uma borracha na ponta
borracha que apaga
tinta de caneta
apaga e não borra nada
nem destrói o papel
diferente daquela da infância
mas essa que apaga mesmo
e não borra nada
só apaga a tinta
da caneta específica
fez um teste
escreveu teste
apagou
sorriu
e sorriu por ter sorrido
uma coisa boba assim
fazê-la sorrir
escreveu
meu corpo todo apartado de mim
e nunca antes tão meu
*Maria Cristina Martins é escritora, jornalista e revisora, atividade que exerce no Arquivo Nacional. Dançarina de flamenco amadora, pintora pré-amadora e amante de programas de humor, ainda sobra tempo pra ser mãe do Vinícius, de um ano, e dominada por Emma, a canina, e Dindi, a felina.
O eterno feminino
em tempos imemoriais
Emilly Martins Alves*
Um "gritinho" de nada
Foi o começo de tudo
Ela, por fim, assustada
Calada, assente, contudo
Culpada sem culpa
Pelo masculino sem escrúpulo
Um "empurrãozinho" de nada
Era o seguimento
Ela não percebia, mas seguia se prendendo
"Desculpas", ele disse
Talvez, uma flor se seguisse
E o emaranhado ia se estendendo
Um "soquinho" de nada
Ah, ela sentiu
Mas fingiu
Seria aquilo amor?
"Esconda isso, por favor!"
As marcas, as lágrimas, a dor
Precisava fugir daquilo
Mas estava amarrada
Sozinha, sem auxílio
Umas "facadinhas" de nada
Seu último suspiro, um grito de horror
E no escárnio de seu assassino, seu sangue escorria, sem nenhum pudor
Junto com o de suas ancestrais
Abusadas, mitificadas, assassinadas
O eterno feminino em tempos imemoriais
E "eles" seguem
Nos estigmatizando
Nos emaranhando
Nos matando
E nos dizendo
Que a nós não pertencemos
Até quando?
2020
[Baseado na obra "Unos cuantos piquetitos" (KAHLO, 1935)]
*Emilly Martins Alves é discente de História pela UERN e aspirante à escritora nas horas vagas. Fascinada por arte, política, sua fusão e sua História, o que dá sempre inspiração para escrever, principalmente pela atemporalidade dos temas e por como podemos observar processos por meio de obras da forma mais autêntica possível.