notas de chegada 1
thaís tanure *

a polícia federal se ocupa da imigração.
da imigração; do covid não nos pediram uma vez sequer o exame. Queriam saber se eu era casada, se eu era francesa, o quão europeia eu era antes de passar a fronteira. Seria o covid uma desculpa?
chegamos em um calor de 38 graus. Ensaiamos uma normalidade na partida. Bonitas partidas, como se o isolamento nos lembrasse que era preciso estar presente. Não víamos os nossos amigos havia tempo, e todo um outro tempo havia pela frente com a mudança. A presença era a solução na quarentena brasileira. Nos despedíamos, em caminhadas, na porta de casa, máscaras adentro, com uma disponibilidade e uma presença inéditas: um presente
em confins fazia um dia frio de inverno, com uma ventania de gelar o pescoço. não estava gelada por (não) levar meus livros e fotografias; estava gelada pelo vento das montanhas de Minas.
já em paris, mal dormida, vivo os 38 graus. E também a incerteza, uma certa sensação de não saber bem o que fazer, travestida de férias / covid. Nos lembramos do parque que tem aqui perto, decidimos ir, de máscaras, com algum frenesi e álcool gel.
ao avistar a paisagem que conheço bem, as árvores em torno dos prédios baixos, a escultura dedicada às crianças tomadas pelos nazistas, o lago com as flores…e… pessoas! Crianças brincando, adultos, várias pessoas simplesmente sendo e existindo junto ao verde daquele parque que era… verde, humano, vivo.
achei que, ao sair do brasil, sairia também do peso do isolamento longo, e também daquele de viver sob a influência irresponsável de um governo genocida, que em muito dificulta a pandemia em si; como se, como espera nossa criança interior, fosse passar em um passe de mágica.
acontece que meus passos pararam ali na frente daquele parque, daquele verde e daquelas pessoas que eu ansiava somente por ouvir. e então, inadvertidamente, comecei a chorar. As lágrimas pulavam para fora da máscara, pedindo para existir. como se ali eu me desse conta de tudo que me privei, que nos privamos. Ali a liberdade tinha corpo, e certamente eram corpos de criança.
e eu que fazia exercícios distópicos com meus amigos e amigas: dizia que, isolados, criávamos raízes dentro de casa. E que, de repente, quando pudéssemos, não sairíamos: iríamos até a porta, a contemplaríamos e daríamos meia-volta, como quem olha um mundo desconhecido que se deseja e que, no entanto, se teme. Recuo. Não esperava que eu iria, de fato, me afeiçoar tanto à casa, alguma casa (que, no entanto, já não mais havia).
a minha cabeça, que doía, mas que, entretanto, não sofreu nenhuma pancada; estava ela também confinada, sem conceber que estava há meses girando em círculos dentro de casa.
subi na teia de aranha gigante do parque, a convite do Lino. Perguntei a ele como ele estava se sentindo. Ele me responde que estava feliz. Insisto, com aquela impertinência materna: “Mas como você está se sentindo vendo outras crianças depois de tanto tempo confinado?”. Ele me responde “Ah, nem foi tanto tempo assim”!
definitivamente o tempo das crianças é o tempo do presente.
o meu olhar se entranhava ao da teia, mas mais (se) estranhava.
* thaís tanure, além de editora da Revista Mulheres do Fim do Mundo com um time phoda, é historiadora, doutoranda na universidade paris 1 sorbonne, nascida em belo horizonte, mineira desconfiada que adora deitar em pedras quentes e escrever até debaixo d’água. atualmente, morre de chuva em paris.