O peso da leveza

por Sheila Lopes Leal Gonçalves*
Mariza teve um sonho terrível. Estava morta. No sonho, despertava de um outro sonho e acordava num lugar muito iluminado, cercado de pessoas que não conhecia. Quando perguntou onde estava, disseram: “você morreu”. Ela não acreditou, então entregaram a ela algo que era como um espelho mágico, mas parecia um tablete distorcido, e nele ela podia ver o mundo dos vivos, com pessoas chorando a morte dela. E num instante lá estava ela, vagando entre os vivos, observando cada detalhe de seu universo, com uma impressionante clareza. Não podia ser verdade, mas era. E o que ela faria? Porque entre os outros mortos (que também transitavam entre os vivos), ela se sentia mesmo muito viva, muito disposta, com energia para movimentar-se e expandir sua mente, com uma vivacidade eletrizante que até então desconhecia.
Acordou com um barulho de trovão ensurdecedor. Chuva de verão. Estava em Buenos Aires há três meses e ainda não sabia muito bem o que fazer da vida. Ela, que sempre soube que jamais deveria se preocupar com essas coisas de “o que fazer da vida, etc e tal”. Na madrugada de relâmpagos, sentou-se na cama, com muito medo. Não da água ou do som, mas de estar sozinha; não naquele momento, mas na vida; não na vida como um todo, talvez apenas naquela cidade. No dia seguinte, apesar de “não ser de igreja, cê sabe”, passou na Catedral Metropolitana e, uma vez lá, sentou e chorou, “igual criança, por uma hora inteirinha”. Agora acho até graça, porque para mim Mariza, sem nem se dar conta, tem uns traços de marxista, especialmente no que diz respeito à religião, que para ela “só confunde a cabeça das pessoas, principalmente as mais humildes... é um tal de entregar na mão de deus, que chega uma hora que a pessoa nem sabe mais que quem manda na vida dela é ela mesma”.
Claro que não tem graça nenhuma. Mariza é a pessoa mais leve que já conheci. Foi uma tristeza imensa encontra-la tão frágil e assustada, tão “gente como a gente”. Vejam, Mariza, sobre quem já escrevi antes, é uma das minhas grandes inspirações e aspirações: admiro-a tanto que gostaria de ser como ela. Enfim... Marcamos uma pizza na Güerrin, quando estive na capital argentina para cobrir uma matéria sobre Fórmula E. No meio daquele salão barulhento e cheiroso ela foi me contando o tal sonho e como estava no trabalho, como se sentia, como se virava no portunhol.

Ela não leva nada ao pé da letra, se você quer falar sério com ela, tem que dizer com todas as letras: “Mariza, agora eu estou falando sério”. E assim perguntei como ela foi parar naquela cidade linda, mas que carrega qualquer coisa de paulista – e acaba ficando estranha. Então ela começou a contar que foi demitida do último emprego, uma creche no Jardim Botânico onde trabalhava, meio expediente, cuidando das crianças, há 5 anos – tive ganas de perguntar como eu nunca tinha ouvido falar disso, mas. Não. Com a grana do FGTS pensou em dar entrada numa casinha, aquietar, deixar crescer raízes... Não. Resolveu visitar Buenos Aires porque era o que estava em promoção num site de viagens famoso; simples assim. Sem se despedir de ninguém, distribuiu suas coisas entre seus amigos e disse que estava de mudança, que quando soubesse o endereço mandava pra gente. Acho que não fiquei realmente surpreso quando vi um postal com a Casa Rosada.
Agora Mariza estava aqui, respirando bons ares e, uma vez mais, se reinventando. Um mês de aulas de yoga, duas semanas de curso de alemão, um affaire na esquina da San Martín com a Calle Reconquista (sempre acho que ela escolhe esses cenários de propósito). “Mas é assim, sabe?, às vezes eu fico tristinha e chorosa, lembro das doideras que fiz, sóbria ou bêbada, tanto faz. Lembro das merdas que falei, dos micos que paguei e sempre acabo rindo sozinha. Sozinha, mas risonha. Tem que ter alguma vantagem, ne?!quédizer?!...”. E nisso, tinha sempre uma letra do Zezé di Camargo & Luciano (ou seria Xitãozinho e Xororó? Sempre confundo) ou mesmo um bom samba para ilustrar qualquer argumento. Cantarolou: “Se eu for pensar muito na vida / Morro cedo, amor / Meu peito é forte, / Nele tenho acumulado tanta dor”.
E para mim soava absurdo, vindo de alguém que já morou em Paracambi, vendeu Avon, serviu mesa, foi babá, professora de informática para a 3ª idade na Rocinha, trabalhou em posto de gasolina, morou nos lugares mais loucos e inóspitos que se possa ter ideia e ainda sempre tinha uma piada para contar, um pedacinho de otimismo para dividir com pessoas como eu, sempre infelizes por não conseguirmos passar aquele final de semana em Búzios, comprar um Iphone mais atual ou um ingresso para o novo show do Caetano. Parece que só agora, depois de ter vivido tudo isso, ela, finalmente, estava cansada e solitária.
Caminhamos pela Avenida de Mayo – e ela insiste em dizer que se parece com a Rio Branco... – enquanto tomávamos um sorvete e sentíamos aquele pôr do sol depois das 20h. Ali sim, naquele sorriso e bochechas sujas de chocolate, eu vi Mariza. Ao mesmo tempo em que finalmente a vi, sabia que o sonho com a própria morte e as angústias que ela compartilhou comigo (e autorizou publicar, desde que eu usasse as “mesmas palavrinhas” dela) foram apenas momentos isolados, exceções que confirmavam a regra: toda leveza tem seu peso, seu fardo. Nos despedimos na porta do meu hotel e ela se foi, um pouco apressada, dizendo que tinha uma cidade a conquistar. Fiquei ali vendo o caminhar dela, a tempo de ouvir aquela gargalhada inesquecível.
*Sheila Lopes Leal Gonçalves é uma das editoras da Revista MFM e já sonhou em ser escritora. Também já sonhou em ser astronauta. Atualmente ela é historiadora e professora dos aprendizes mais incríveis e tem muito orgulho em apoiar sonhos e acompanhar jornadas. Antes da caralha da pandemia ela viajava muito e morou em diferentes países.
Imagens do acervo pessoal da autora, cedidas com autorização da Mariza.