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"La Gringa": Eve Rodrigues

Atualizado: 20 de nov. de 2020



O machismo de todos nós



Eve Rodrigues*


Cabo Polônio, como o nome diz, é geograficamente um cabo. Está situado no país vizinho, Uruguai, e em princípios da década de setenta começou a ser descoberto por los hermanos como um local de turismo. Mais adiante, esta descoberta ganhou o mundo e antes mesmo de se tornar um destino cult aqui entre nós, já estava nos mapas de mochileiros europeus. É um lugar incrível, onde a luz elétrica até os dias de hoje ainda não chegou, onde não há água encanada e, apesar da intensa exploração turística que sofre, permanece sendo um lugar especial. Muitos foram os que se mudaram para Polônio para promoverem em suas vidas uma forma alternativa de consumo e de ocupação… E é aí que quero incluir minha narrativa.



Foto: Eve Rodrigues (acervo pessoal da fotógrafa)

Em fevereiro de 2019, eu já havia me apaixonado por Polônio há alguns anos e este Cabo era destino frequente de minhas viagens. No entanto, queria fazer uma experiência e viver tão somente do que o lugar me pudesse prover: por um mês me propus a não depender de nenhuma fonte de ganho monetário e também me abstive de sacar dinheiro, o que lá é impossível, ou levar dinheiro comigo para minha subsistência ou prazer. Assim, no dia 31 de janeiro de 2019 cheguei ao cabito para trabalhar em um hostel em um voluntariado artístico, onde trocaria hospedagem e alimentação completa por meu trabalho em atividades pré acordadas do hostel e por fotos diárias para a página deste hostel.


Minhas incursões em qualquer lado que vá tem por objetivo fotear. Minha ideia era viver do meu próprio trabalho, ou seja, que meu corpo sustentasse meu corpo e, assim, me aproximar o mais possível de alguma espécie de desligamento de maneira a imergir totalmente na realidade física daquele espaço. Estava preparada para fazer 33 camas por dia… estava preparada para cumprir minhas tarefas no hostel e meu horário de 11hs até as 15hs me dava de sobra o amanhecer, a manhã e a tarde e ainda o pôr do sol e a noite para minhas fotos. Ok, valia muito a pena. O trabalho era pesado, eu sabia, mas estava disposta também a ver se meu corpo poderia aguentar o que minhas idéias estavam dispostas a abraçar.


No hostel o gerente era um uruguaio que tinha vivido alguns anos nos Estados Unidos estudando artes e que tinha aquela postura livre e descompromissada, dos que andam entre o budismo e naturismo... Tocava violão e segundo ele era esta sua paixão... O garoto que fazia o turno da manhã era um brasileiro de 22 anos, do Rio Grande do Sul, super gente boa, um garoto que estava descobrindo o mundo e de lá iria fazer uma viagem em bicicleta até o Chile, atravessando desde o Uruguai, passando pela Argentina. O do turno da noite era um carinha de uns 40 e poucos anos, também gaúcho, que havia largado seu trailer de massas para se jogar em uma vida alternativa e estava fazendo o turno da noite do hostel, onde propunham jantar aos hóspedes. Esta era a equipe.


Ao primeiro turno cabia o café da manhã, que ele vendia aos hóspedes... Limpar o salão e os banheiros, limpar a cozinha da noite anterior, organizar o hostel para receber os hóspedes que chegassem pela manhã antes das 12hs. Os quartos só ficavam disponíveis depois das 13hs. A mim cabia fazer check in dos hóspedes, arrumar as camas e preparar nosso almoço. Ao turno da noite fazer check in dos que chegavam pela tarde, limpar novamente os banheiros e fazer jantar. O jantar também era vendido e o dinheiro dividido entre o gerente e o cozinheiro brasileiro. Tarefas como lavar as roupas de cama e limpar o hostel seriam feitas em turnos por todos nós. Aqui entra o motivo da narrativa. Isto foi acordado, este esquema era assim desde que havia começado o voluntariado, mas nunca antes o voluntariado se dividira entre 2 homens e uma mulher...e, por conta disso, desse machismo arraigado na cultura dos brasileiros e dos uruguaios, as tarefas foram aos poucos sendo empurradas para mim...


O garoto do café da manhã não lavava mais a louça... o garoto da noite igualmente não lavava mais a louça e nem limpava mais o banheiro. Passavam o tempo todo com o tal gerente tocando violão, fumando e falando do modo de vida alternativo que tinham escolhido para si. O gerente se colocava como um guru espiritual e discursava horas a fio sentado em uma rede com os outros dois ao lado enquanto eu trabalhava… parece bizarro mas era assim mesmo.. A princípio pensei que seria passageiro, quando percebi que não, fiz uma reunião entre todos. Me escutaram e riram entre si como uma confraria.. O gerente me disse “Ok Eve, anotada a reclamação”. Começaram a faltar jogos de cama limpos para trocar e chamei a todos para tirarmos uma segunda feira que não havia hóspedes e que estava sol para lavar a roupa. Recolhi todos os jogos e coloquei em partes na máquina, eles saíram e só voltaram a noite. Todos, inclusive o gerente...


Muitas coisas do tipo aconteceram e quase desisti...até me dar conta de que não era um problema meu, era deles. Eles eram medíocres o bastante para jogar trabalho nas costas de outra pessoa e, principalmente, porque eu era mulher a única mulher ali. Se fechavam em um grupo, não me respondiam quando chamava a razão, apenas diziam: “Foi mal! Eve, desculpa..” e seguia sendo a mesma coisa. Não adiantava nada. A finalidade deles era não ter que fazer o trabalho doméstico, porque quando eram crianças foram criados assim..assistindo as mulheres da casa trabalhando o dia todo. Sua função nesta hierarquia familiar primitiva era trabalhar fora da casa...e se não havia fora da casa..então assistiam. Aos poucos me adaptei a resolver tudo dentro do horário que tinha que trabalhar de modo a poder fazer o que tinha ido fazer ali... fotiar.



Foto: Eve Rodrigues (acervo pessoal da fotógrafa)



O resto foi aprendizado. Meu objetivo ali era outro e particularmente queria saber se eu era capaz de resistir a tentação de consumir e vi nisso uma oportunidade a mais… porque não me custava nada sair e ir para um hostel e desfrutar de turista. Mas minhas fotos necessitavam de outra vivência da minha parte. Então segui...e aprendi mais ainda. O que percebi foi claro e não existe um remédio para isto que não seja a educação. No Uruguai, como no sul do país - eu testemunhei porque cresci por aqui - são as mães que criam estes adultos indulgentes e desrespeitosos. Os homens sentam à mesa e são servidos pelas mulheres; comem e se levantam sem nem mesmo recolherem seus pratos.. É uma prática que ao longo de gerações foi formando no fundo pessoas covardes… homens covardes e mulheres fortes. No entanto, esta mesma balança que nasce dentro das casas se estende ao mundo exterior de maneira equivocada. O homem é colocado como um indivíduo a quem se deve servir, preservar… porque oficialmente é dele o espaço lá fora para trazer o sustento para dentro da casa. E ainda assim, quando esta fórmula não mais se justifica segue o costume… mesmo entre hippies tardios do séc XXI.


O machismo, como todos os ismos, está dentro e não vem de lugar algum que não de dentro. Isso porque ele tá enraizado nas engrenagens e estruturas da nossa sociedade. De uma forma que tão sutil (e por isso cruel) que muitas mulheres, especialmente nas gerações passadas, não conseguiam sequer identificá-lo e assim, sem se dar conta, o reproduziam - e ainda hoje o reproduzem. Dentro das casas quando as mães pedem às filhas que as ajudem a levar a roupa que acabam de tirar de dentro da máquina, enquanto o menino está na sala jogando com seus botões. Quando a mesma mãe pede que a filha coloque os pratos na mesa enquanto o filho está sentado em frente à TV assistindo o jornal esportivo. O exemplo, o tratamento, a educação enfim, que os pais transmitem a seus filhos é nela que está todo o mal… a raiz de todo o mal. Porque estes exemplos que são passados inconscientemente trazem em si um selo de identidade… não são questionáveis ao se tornarem cotidianos. Porque as mães servem a seus maridos, servem a seus filhos e por último e quando ninguém mais lhe pede nada servem a si mesmas? Como se todos fossem prioridade menos ela mesma? Uma vez seria gentileza… todos os dias é consolidar e perpetuar uma prática alienada que produz seres incompletos e que, ainda pior, é considerado amor. Essa lógica de priorizar o outro, especialmente os homens da família, é uma das faces mais cruéis da sociedade machista.

A vivência de uma viagem só é real quando conseguimos nos desembaraçar de nossas bagagens internas.. e não nos sentirmos nem privilegiadas ou exploradas.. Estar de passagem em qualquer lugar ou situação exige um grau maior de compromisso consigo mesmo, que vai além de qualquer exercício de individualidade, mas que permite uma vivência real e ao mesmo tempo alheia das situações mais triviais. Um discernimento constante se faz necessário para identificar o limite que aquele espaço, aquela cultura traçam, porque estar de passagem importa em observar, aprender e deixar que a intervenção se faça quando você já não está mais lá… através do exemplo que você deixar.




* Eve Rodrigues

"A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam".

(A Viagem do Elefante-José Saramago)

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Fotógrafa,viajante e mochileira!

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