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"La Gringa": Ana Clara Veras

Atualizado: 7 de ago. de 2021

Ir para o México e encontrar o Nordeste


por Ana Clara Veras*



Legenda: Foto colagem da oficina de coco de roda para a Companía los Jóvenes Zapateadores de Xalapa, Veracruz, ministrada por Ana Clara Veras, em Veracruz - México.


De acordo com um papel grande e timbrado que recebi da Universidade, eu sou uma mulher licenciada em teatro. Aparentemente sou professora. Mas também sou artista. Na maioria do tempo sou artista de teatro. Sou atriz, investigadora, inquieta e inconstante.

Iniciei minhas viagens para o México em 2018, acompanhando o grupo Arkhétypos de Teatro (UFRN), onde realizamos uma apresentação de dança-teatro no Festival Internacional Escena Mazatlán, nessa cidade turística, marítima e tropical mazatleca, muito parecida com a nossa Natal. Não somente pelo clima quente e pura maresia, mas também pelos desejos de uma importada american way of life. Desde 2018, fui mais quatro vezes visitar aquele país. Nunca imaginei que fosse me encantar por um país inteiro, nunca imaginei me encontrar apaixonada por essas terras rochosas, secas, úmidas, férteis, indígenas, de sangue e revolução.

A cada viagem, fui com um propósito diferente. Mas existia um em específico que conectou, para mim, todas as vezes que fui: o afeto. Essa permissão pessoal de me deixar afetar pelas pessoas-estradas que encontrava. Da última vez, pude viajar com um plano de oficinas artísticas que iria ofertar em algumas cidades do país (Oaxaca, Xalapa, Cidade do México e Querétaro). Porém, minha intenção real não era simplesmente dar uma oficina artística e voltar pra casa me imaginando contente com o meu trabalho. Não. Eu queria ver gente. Eu queria saber das diferentes gentes (do espanhol: pessoas, grupo ou classe social). Por sorte, a cada passo que dava findei conhecendo artistas de diversos países da América Latina e suas pluralidades locais.

É inevitável. Não importa aonde esteja, a cada encontro com essas artistas, em situações sempre distintas, tocamos neste assunto: as violências contra a mulher e o papel da arte em seu combate. É algo que nos sobrepassa e não podemos fugir da iminência desse diálogo. Quando nos percebemos mulheres artistas em uma sociedade que parece que não foi construída para nossas cuerpas, e por consequência nossa sobrevivência, entramos em tamanhas discussões, nos sobram relatos e a potência criadora toma conta.


Seu grito silenciou lá no alto em Olinda era uma mulher tão linda que a natureza criou.

Ela foi morta no meio da madrugada com um tiro de espingarda pela mão do seu amor.

Fico orando a Deus peço clemência com toda essa violência o mundo vai se acabar.

Moro em Olinda canto coco com amor luto contra a violência porque mulher também sou.

Eu sou guerreira mulher mulher guerreira eu sou eu canto coco em Olinda e canto com muito amor."

“Seu Grito”, por Mestra Aurinha do Coco.


Mas vamos por partes. Nesta última viagem, tive a oportunidade de ofertar oficinas sobre a dança do coco de roda, para coletivos diversos. O coco é um canto de resistência (histórica e física), que para mim é uma arte completamente democrática quando ela me diz em sua estrutura circular que só pode existir quando todes fazem parte. É extremamente acessível, sem idades, sem discriminação. Poucos conhecem o coco fora do Brasil, e eu mesma sendo cearense não conhecia até chegar em Natal. Coisa que hoje me parece estranha, pois descobri que minha madrinha era coqueira e dançava o coco de Roda constantemente no Dragão do Mar (centro cultural em Fortaleza/CE, nomeado em homenagem a essa figura histórica no período da abolição). Foi aí que comecei a identificar o silenciamentos desse canto, dessa dança, dessa resistência em forma de arte.

Não se sabe exatamente de onde veio o coco de roda. Temos algumas teorias. Sendo uma arte com raízes na oralidade, ainda não tive acesso a uma pesquisa histórica aprofundada que comprove sua origem. Também acredito que não importa essa precisão. Sabemos que veio de nós. Veio do Nordeste brasileiro, entre o Ceará até a Zona da Mata (do Rio Grande do Norte até o sul da Bahia). Veio delas e deles, das três raças, das mestras e mestres, das trabalhadoras da terra, das lavandeiras de beira de rio, das brincantes. Fluentes na arte da vida. Suas músicas são compostas de histórias, de rimas, de jogos, de drama e riso. São expressões de um povo, de uma forma de sentir a vida. Sentir o pulsar da vida no cintilar das platinelas do pandeiro, no toque do tambor pelas pontas dos dedos e no estalar das mãos em palmas rítmicas.

E como é que se faz uma oficina de coco de roda? Eu sinceramente não sei nem se isso existe. Deve existir. Alguém seguramente já fez. Porém, o que eu busco não é uma oficina onde todes aprendam o passo de base e poste nas suas redes sociais um vídeo divertido. Como uma pessoa que busca a sensibilidade acima de todas as coisas, proponho uma prática. Uma ideia de sustentar a vida no olhar enquanto dançamos juntas. Poderia até ser uma metáfora da vida. Vejam bem, para mim o coco de roda é um jogo, uma brincadeira que se joga sério, um instante efêmero, jocoso e gostoso.

E porquê falar do coco no México?

Tive a honra de ofertar e compartilhar essa brincadeira popular com a Companía los Jóvenes Zapateadores de Xalapa, Veracruz. Uma companhia que tem como base os estudos das danças tradicionais de sapateado do México. Pela colonização espanhola, o país herdou uma mescla cultural entre seus nativos indígenas e seus violadores. Assim como o coco é um tipo de sapateado, eles executam várias manobras desse sapateado como o Son Jarocho, o estilo musical e de baile mais popular no México. As músicas, assim como no coco, são histórias jocosas e tradicionais que contam sobre o imaginário de um povo.

Ao entrar naquele salão de ensaio, cheio de meninas, meninos, adultos e professoras, aquecendo o corpo ao som dos próprios passos, no pulsar dos seus sapateados, com sorrisos nos rostos que apenas se notavam pelas rugas ao redor dos olhos, pela máscara sanitária que cobria os lábios... Eu sabia que ali era meu lugar. Com eles, criamos um lugar nosso. Um espaço onde nossos países se encontraram no pé. Uma troca sem igual, porém bastante similar com a sensação de uma roda de coco na beira da praia de Ponta Negra, em Natal-RN.

Dizem que os brincantes populares têm o peito mais aberto para dar mais espaço para outras pessoas entrarem e receberem a hospitalidade que somente uma comunidade é capaz de oferecer. E eu fui recebida de peito, braços e sorrisos abertos. Retornando nossa conversa para o momento da eminência do diálogo entre as mulheres artísticas em combate a violência aplicada a todas nós, faço aqui a linha de conexão entre o coco e a arte da Resistência intercultural.

"As mulheres sempre estiveram aí: cantando, dançando, fazendo o café que aquece a vida, tomando da cachaça que formiga os dedos dos pés".
Ana Clara Veras

Os bailes populares, as formas de expressões dramáticas de um povo, a composição de uma dramaturgia efêmera e momentânea pintam ambos os países. Pode existir uma tradição, um canto conhecido, uma repetição desse ritual, dessa dança, desse acontecimento... Mas jamais uma roda ou um encontro será como outro. Por nossas mudanças sociais e epistemológicas, hoje o tema da violência contra a mulher é menos tabu e mais necessidade. As mulheres sempre estiveram aí: cantando, dançando, fazendo o café que aquece a vida, tomando da cachaça que formiga os dedos dos pés.

Nós inventamos formas de existir, ou melhor, de resistir. Acredito e defenderei a ideia de que uma mulher em cena (cena-vida-arte) pode ser uma grandiosa ferramenta de transformação social, como um ato de renovação social. Ocupando esses espaços artísticos, como fez e faz dona Aurinha do Coco quando cantou a música no início desse texto citada. “Seu Grito” não é apenas o relato sobre um assassinato real na favela onde morava em Olinda, é um grito preso na garganta, um peso no peito e uma mão forte para erguer outras mulheres.


* Sobre a autora: Ana Clara Veras Brito de Almeida é atriz e pesquisadora do Grupo Arkhétypos de Teatro (Natal/Brasil). Colaboradora do grupo de extensão da UFRN (Universidade do Rio Grande do Norte) Voz Feminina, coordenado pela atriz, cantora e professora Ms. Mayra Montenegro. Fez parte da equipe organizadora do Festival O Mundo Inteiro é um Palco, do Grupo Clowns de Shakespeare durante 3 anos. Participou do Tercer Coloquio Latinoamericano de Investigación y Prácticas de la Danza (2018) com o trabalho As danças populares brasileiras como treinamento físico do ator. Participou como atriz da residência artística no México em 2018 que resultou na performance Encuentros Ancestrales: Cempasúchil, em Oaxaca. Além de ter ministrado oficinas pelo o interior do estado do Rio Grande do Norte e na capital do Ceará, Fortaleza, sob temáticas de Teatro do Oprimido (Augusto Boal) e trabalhos sobre o exercício da escuta do ator. Atua principalmente nos seguintes áreas: teatro, estudos contemporâneos, universo latinoamericano e feminino. É autora da dramaturgia Nós versus eles (2020), projeto contemplado e fomentado com recursos da Lei Aldir Blanc, Fundação José Augusto, Governo do Estado do Rio Grande do Norte, Secretaria Especial da Cultura, Ministério do Turismo e Governo Federal. Através do EDITAL N. 02/2020 – FJA de Diversidade sócio-humana. Os trabalhos de Ana Clara Veras podem ser conferidos em seu canal no Youtube https://www.youtube.com/c/AnaClaraVeras/featured e em seu instagram @deverasanaveras





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