Hoje apresentamos a segunda entrevista da série “Mulheres editoras”. Editada por seis mulheres, a MFM, contudo, não nasce sozinha. Entrevistaremos mulheres que trabalham na editoração de textos há muitos ou poucos anos, refletindo um espelho que lembra que nunca andamos sós: um lugar está infinitamente conectado a muitos outros - e outras, nas quais buscamos nos inspirar.

Laura*, antes de começarmos, gostaríamos de agradecer a disponibilidade para essa conversa. Nós, Revista Mulheres do Fim do Mundo, estamos produzindo uma série de entrevistas com mulheres, ou grupos de mulheres, que estão à frente de projetos editoriais, e a Zazie não poderia faltar. Pois, trata-se de uma proposta que admiramos muito. Por outro lado, como você mesma já falou em entrevistas anteriores, a Zazie é fruto de um trabalho quase artesanal, com uma estrutura pequena, inclusive de divulgação. Nossa revista tem um público, em grande parte, formado por mulheres estudantes de graduação e pós-graduação em todo o Brasil. A intenção é que possamos apresentá-la às nossas leitoras.
1 - Em conversa com a revista Bravo! você relatou que o projeto da Zazie, elaborado com Karl Erik Schøllhammer (como você, também pesquisador e professor), objetivava “criar bibliografia num sistema de acesso gratuito (open access) para democratizar a circulação de textos que intervêm de maneira contundente num determinado campo de conhecimento ou contexto de discussão”. Gostaríamos que você fizesse um balanço da experiência com essa forma de trabalho editorial, considerando-se que a editora está completando, agora, seu aniversário de 5 anos (12-12-2020). Mais especificamente: Como você analisa o impacto da Zazie em meio a um mercado editorial ainda tão monopolizado como o brasileiro? O acesso aos ensaios tem crescido? Vocês já conseguem delinear o principal público dos livros que publicam?
É preciso dizer que somos realmente uma pequena editora, com uma equipe muito enxuta mas à qual sou extremamente grata, são profissionais excelentes, Maria Cristaldi é a designer, Angela Vianna e Denise Pessoa têm trabalhado comigo na preparação, e Cecília Andreo nas revisões. Eu atuo tanto na concepção das coleções e seleção dos textos, quanto na editoração, mas também na lida com editores para obter os direitos de tradução e publicação gratuitamente. Muitos autores me ajudam nessa etapa, mas sou, digamos, a editora e a minha própria secretária, além de faz tudo. Venho cuidando da divulgação e das campanhas de financiamento coletivo. Não me pergunte como consigo tempo pra isso, esse tempo, a rigor, não existe na minha vida, já que sou professora e pesquisadora, e escrevo também para jornais e revistas. Porém, a Zazie Edições é um projeto que me mobiliza a sério, pois nele posso fazer convergir minha paixão de leitora, minha curiosidade bibliográfica para além da minha própria área de pesquisa e docência, e também minha paixão crítica, intervindo ainda que indiretamente, através dos textos publicados, no debate contemporâneo. É muito bacana dar forma às reflexões tornando-as consultáveis, passíveis de serem retomadas e repensadas em outros trabalhos, por outros autores. Quando digo intervir, penso que nos interessa publicar livros que circulem facilmente e que podem, em alguma medida, fomentar discussões indo além da futilidade da opinião ou da esterilidade da polêmica que predominam em diversos espaços.
O acesso aos ensaios tem crescido sim, os livros têm sido incorporados à bibliografia de diversos cursos de graduação e pós-graduação em universidades públicas e privadas no Brasil. Começamos a ter mais acessos de Portugal e leitores dos países da África lusófona. Alguns ensaios foram incluídos na bibliografia de concursos de Mestrado e Doutorado, onde cada vez mais há exigência por textos que estejam disponíveis na internet de forma gratuita. Recebo às vezes mensagens de agradecimento – algumas muito divertidas – de estudantes de todo o Brasil. Não tenho como responder com toda certeza, mas creio que nossos leitores são predominantemente estudantes de graduação, pós-graduação e professores pesquisadores. Também recebo notícia de escritores e psicanalistas que são leitores de nossas publicações. Há também o leitor diletante, que se interessa por diferentes assuntos e busca textos um pouco mais densos, mas não vai necessariamente usar esses ensaios para uma pesquisa ou para escrever um outro texto.
2 – Você já comentou que, atualmente, o uso de PDF’s se torna quase imprescindível na docência em ensino superior e que os PDF’s são, muitas vezes, considerados os vilões do mercado editorial. Por isso, a necessidade de democratizar o acesso a textos importantes, editá-los com ISBN e com cuidadosos trabalhos de tradução e revisão, que é como a Zazie vem fazendo. Por outro lado, uma breve apreciação sobre o catálogo da editora nos confronta com autores às vezes pouco conhecidos no Brasil e com ensaios que dialogam, simultaneamente, com vários campos de conhecimento. Ou seja, nos parece que o foco, de modo geral, não são os autores já tradicionais, fartamente lidos nos cursos de humanidades no país. Dito isso, temos duas perguntas:
a) Quais são os critérios que vocês utilizam para a escolha dos títulos a serem publicados e traduzidos?
Os critérios não são camisas-de-força, podem sempre ser revistos, remodelados, ampliados ou re-imaginados. Há o critério – que pode ser subvertido em algum momento – de publicar autores vivos. Um outro, aqui falando da Pequena Biblioteca de Ensaios, é o de dar visibilidade e até fomentar um tipo de escrita teórico-crítica menos atada aos formatos utilizados pelas revistas acadêmicas indexadas. Aí entra o meu interesse pelo ensaio como gênero tanto reflexivo quanto literário. Explorar essas outras possibilidades da inflexão ensaística é um dos critérios, ou talvez, melhor dizendo, uma das intenções da coleção. Tenho tentado também abrir espaço para alguns jovens pesquisadores, há uma mescla também entre ensaios que se dedicam a pensar o presente ou a conjuntura – publicamos dois títulos sobre a pandemia e mais recentemente um ensaio do Adriano de Freixo sobre a relação entre o governo Jair Bolsonaro e os militares – e textos desprovidos de sentido de urgência ou de atualidade, como as reflexões sobre o próprio ensaio e sobre a anedota que compõem o livro de Jean-Christophe Bailly, ou a reflexão de Katia Muricy sobre a autobiografia como gênero filosófico, a partir de uma reflexão sobre o Ecce homo de Nietzsche. Poderia citar outros, o livro de Pascal Quignard, por exemplo, que transita com uma impressionante familiaridade por entre imagens da antiguidade clássica, e assim nos fornece elementos preciosos para a teoria da imagem atual, além de uma reflexão importante sobre a forma como o latim, quer dizer, como a língua latina determinou o olhar e a produção de visualidade naquela cultura e época.
b) A sua experiência como leitora e, também, os seus trabalhos como artista plástica, escritora e professora de História da Arte marcaram o desenvolvimento desse projeto?
Certamente. A coleção surgiu inicialmente de minhas inquietações como professora da UNIRIO. Trabalhando com teoria e história da imagem, frequentemente me deparava com a dificuldade de encontrar bibliografia atual traduzida para trabalhar em aula, sobretudo na graduação, onde não podemos utilizar textos em língua estrangeira. O livro do Quignard, por exemplo, para mim pessoalmente foi uma alegria editar, pois logo o integrei às minhas próprias aulas. Também cheguei a usar o texto da Wendy Brown sobre neoliberalismo, e o do Bailly, já mencionado. A experiência de dar aulas numa universidade pública foi crucial para a minha compreensão do problema do acesso à bibliografia e para a compreensão das dinâmicas reais de circulação e de uso de textos nas universidades. Quando fui aluna de graduação – sou formada em Literatura pela UERJ – tudo ainda circulava na base de xerox. Dos anos noventa pra cá isso mudou, a chegada da internet alterou o modo como compartilhamos textos na academia, em todo o mundo. Creio que isso deva ser levado em conta e enfrentado de maneira honesta nos debates sobre o campo editorial, para além de uma compreensão do leitor como consumidor, ou seja, como comprador de livros. O estudante e mesmo o professor pesquisador são leitores que têm nos textos seu material de trabalho, e os alunos por sua vez dependem do acesso para sua formação. Seria importante delinear esse espaço formativo para defender políticas editoriais e de acesso aos livros mais coerentes com as necessidades reais dos estudantes e professores, considerando inclusive a dinâmica de tempo, o “timing” em geral totalmente desconsiderados pelos editores que, ou já esqueceram da sua experiência quando graduandos, ou porque adotaram uma visão estritamente comercial do objeto livro. Nenhuma biblioteca universitária dá conta da demanda real de alunos e professores, e a longo prazo, nenhuma biblioteca, mesmo as muito ricas, será capaz de manter espaços de estocagem para todos os livros físicos de modo a ter um acervo atualizado em todas as áreas de pesquisa que uma universidade recobre. Nem vou entrar aqui na questão do papel, mas essa deve ser considerada e tem sido bastante discutida na Europa onde as políticas para o incremento das publicações acadêmicas open access são guiadas igualmente por perspectivas ambientais e ecológicas.
3 – A personagem Zazie, imaginada por Raymond Queneau e que inspirou o nome da editora, é uma adolescente questionadora e impetuosa. As características da personagem, com seu ímpeto crítico, nos remetem aos possíveis objetivos e impactos políticos da atuação da Zazie, editora. Você considera a própria existência do projeto como um ato político? Aproveitando, também gostaríamos que você falasse das formas de financiamento para a efetivação desse trabalho.
Olha, a Zazie é uma menina, não uma adolescente. Ela é desbocada e tem aquela ideia fixa de visitar o metrô, que está em greve. Acho que a editora é pequena, teimosa, desbocada talvez não, mas temos a ideia fixa de que democratizar o acesso à bibliografia de qualidade é fundamental. Outra ideia fixa é de que o ensaio é um gênero elástico formidável, é o gênero da pesquisa, de quem busca algo, esse algo pode variar muito, mas no ensaio o percurso na direção desse algo é crucial, muitas vezes mais do que o ponto de chegada.
4 – Recentemente, dentro da Pequena biblioteca de ensaios, coleção que você coordena, foi lançada a Perspectiva feminista, exclusivamente com textos de mulheres. O último ensaio publicado, de Ana Elisa Ribeiro, é intitulado Subnarradas: mulheres que editam, e aborda, entre outros temas, o apagamento das histórias das mulheres editoras no Brasil. Você pode nos contar como surgiu a ideia de lançar a Perspectiva feminista no interior da Pequena biblioteca de ensaios?
Esse projeto é coordenado por mim e pela Ana Bernstein, que foi minha colega na UNIRIO e é uma grande amiga e parceira de trabalho. Tínhamos feito um levantamento grande de textos feministas para um curso que ministramos e constatamos que havia muito pouca coisa traduzida. A coleção surgiu daí, com a ideia de traduzir alguns ensaios e também de publicar textos inéditos, de autoras brasileiras e latino-americanas sobretudo. Nos últimos anos o pensamento feminista se tornou um nicho importante e uma aposta do mercado editorial, mas de novo, para quem está na universidade é importante poder ter acesso mais direto a esses textos que são muitas vezes bibliografia fundamental. É muito bacana que as editoras comerciais se interessem e publiquem teoria e crítica feminista, mas muitos livros logo desaparecem das livrarias e caem numa espécie de limbo, um dia ressurgem nos sites de sebos virtuais ou na própria Amazon a preços extorsivos. A Zazie quer combater esse tipo de sequestro da bibliografia crítica, muito esforço e trabalho editorial se perde nesse ciclo de vida super breve do livro teórico no Brasil. Essa é outra questão que precisaria ser discutida e que poderia ser objeto de programas de democratização do acesso à bibliografia.
5 – Por fim, gostaríamos de fazer uma pergunta mais pessoal, mas que consideramos importante neste momento: gostaríamos de te ouvir sobre como foi e é a experiência da maternidade para você. De que maneira a maternidade transforma/convida/se relaciona com seus trabalhos nos campos da arte, da literatura e da edição? E, também, sobre o maternar neste contexto da pandemia: como conciliar tantos tempos distintos em um espaço comprimido?

Boa pergunta, essa. Olha, sempre respondo mais ou menos da mesma forma. Nunca fui muito organizada, mas sempre fui muito “trabalhadeira”. Não quero usar aqui a palavra “produtiva” porque nem todo trabalho é exatamente produtivo no sentido que essa palavra adquiriu na época em que vivemos. Trabalhadeira era uma abelha chamada Zizi, a personagem de uma estória que eu adorava ler quando criança, uma coleção sobre os bichos de Catimbó, que, veja só, também desapareceu! Uma pena, pois era ótima. Lembro que essa abelha Zizi contava os grãos de areia da praia. Bom, mas respondendo, o fato de ter sempre trabalhado muito mas nunca de forma muito linear ou organizada fez com que a presença dos meus filhos tenha sido sempre mais um fator de entropia numa rotina de trabalho já meio bagunçada e bagunceira. Aqui na Dinamarca conto muito com a parceria doméstica do Karl, meu companheiro, sem ele seria bem mais complicado esse arranjo malabarista dos muitos trabalhos que faço.
*Além de editora na Zazie, Laura Erber é professora visitante da Universidade de Copenhague, escritora e artista visual.
A Zazie está com campanha de financiamento coletivo aberta, para quem puder contribuir com esse trabalho incrível:
Foto de capa publicada originalmente em:
https://www.telam.com.ar/notas/201805/279492-laura-erber-novela-ardillas-pavlov.html