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Entrevistas: Carolina Fenati, Edições Chão da feira

Atualizado: 21 de dez. de 2020


#mulhereseditoras


Hoje se inicia a série de entrevistas “Mulheres Editoras” realizadas pela Revista Mulheres do Fim do Mundo. Editada por seis mulheres, a MFM, contudo, não nasce sozinha. Entrevistaremos mulheres que trabalham na editoração de textos há muitos ou poucos anos, refletindo um espelho que lembra que nunca andamos sós: um lugar está infinitamente conectado a muitos outros - e outras, nas quais buscamos nos inspirar.




Nesta edição entrevistamos a Maria Carolina Fenati, editora da Chão da Feira e professora. Formada em História pela UFMG, estudou literatura portuguesa contemporânea em Lisboa em seu mestrado e doutorado. Fundou a Chão da Feira em 2011, organizando a coleção Caderno de Leituras, a revista Gratuita e a publicação de livros junto a outras três mulheres.



Mulheres do Fim do Mundo (MFM) - Você é uma das editoras responsáveis pelas Edições Chão da feira, um projeto gestado e gerido por mulheres. Conte-nos um pouco sobre como surgiu esse projeto e como ele vem sendo desenvolvido até agora por você e por outras mulheres.


Maria Carolina Fenati (MCF) - A Chão da Feira começou com o primeiro número do Caderno de Leituras, em dezembro de 2011. Ou ainda, talvez tenha começado bem antes, quando comecei a imaginar modos de ler e escrever junto, de formar equipe ao redor da escrita. Quando fazia doutorado na Universidade Nova de Lisboa, vivia boa parte dos meus dias sozinha com os livros na biblioteca, o que continuo a adorar fazer. Mas queria fazer isso junto, conversar, praticar, enfim, era uma intuição de não ficar sempre só com aquilo que eu amava. Começou então esta ideia de publicar gratuitamente ensaios breves, e o nome da editora era o nome da minha rua em Lisboa, Chão da Feira. Fiz o caderno 1, e já no segundo número senti que algumas pessoas se aproximaram, tanto leitores como amigas que se tornaram editoras junto comigo. Quando publicamos nossos primeiros livros e o número 1 da revista Gratuita, já éramos uma equipe que, em grande parte, está presente hoje. Luísa Rabello e Júlia de Carvalho são amigas que adoro e editoras incríveis com as quais tenho a alegria de partilhar a editora, e a vida também.


MFM - Na edição 100 dos Cadernos de leitura você compartilha um pouco da história dessa coleção, que veio de uma necessidade de escuta, da leitura e também da palavra como forma de estar junto. Você pode nos falar um pouco sobre essas diversas formas de partilhar a leitura?


MCF - Só muito recentemente – na Idade Moderna – a leitura se tornou um gesto solitário. Líamos em público, e antes, as histórias eram ouvidas. Isso, digamos, na tradição ocidental do conhecimento, porque sabemos que há tantas e tantas culturas, inclusive no Brasil, em que a partilha das histórias é feita oralmente. A escuta é um dos sentidos profundamente ligados ao imaginário, é um dos sentidos ligados à uma postura ética de respeito ao outro, ao desconhecido. Por outro lado, há uma solidão da escrita que é inegável e de algum modo essencial; e há também a solidão do autor, a solidão da pessoa que escreve, o que não precisa ser necessariamente assim. Aprendo muito conversando com os autores dos textos que publicamos, aprendo muito com o processo de edição, esta espécie de laboratório das palavras. Há ainda qualquer coisa que tem a ver com participar na democratização do acesso ao livro, à escrita e à leitura, um posicionamento público e político que a paixão pelos livros me faz desejar. Isso, por um lado, implica em publicar textos cujo acesso é gratuito, e outros com um valor acessível. Por outro lado, também implica a abertura para formas de pensamento variadas, que observem o que imaginamos estar a espera de ser pensado, isto é, o que não sabemos mas de algum modo está aqui, ou ainda, como escreveu Agamben, os escuros do contemporâneo.


MFM - Você conta, também na edição 100 dos Cadernos, como a experiência de deslocamento geográfico operou igualmente um deslocamento nos textos lidos e publicados; a atenção se voltando às distintas epistemologias ameríndias do sul, na investigação sobre a sabedoria das plantas... Você pode nos contar um pouco sobre esses diferentes deslocamentos e como eles se relacionam?


MCF - Este caderno 100 foi uma edição comemorativa no qual decidi contar um pouco a história da coleção. Não havia entendido esta história, ou melhor, não havia tentado traça-la antes com tanta clareza quanto fiz quando escrevi o caderno. É engraçado como, às regiões geográficas, corresponde um certa região bibliográfica e do imaginário. O cardápio de autores e mesmo de questões que circulavam na universidade em Lisboa era fantástica, e muito centrada nos autores europeus. Aprendi imenso ali, e sou muito grata. Quando vim para o Brasil, outros autores surgiram, e também outras questões. Não há que negar que aquilo que pensamos está muito ligado aos outros sentidos, quer dizer, ao que vemos e ouvimos, ao que cheiramos, ao que está ao nosso redor. O cheiro de queimada, para dizer algo que perturba o nosso pensamento hoje, deve ser sentido por todo o mundo, mas ele é mais intenso aqui. Por outro lado, a certeza de uma espécie de limite civilizatório, ou ainda, a sensação de que estamos presos num labirinto cultural foi, para mim, mais evidente diante da multiplicidade de culturas e cosmogonias ameríndias vivas no Brasil. Talvez seja a questão das vizinhanças, talvez seja uma espécie de reencontro que vivi, ou as duas coisas – de todo modo, pensar é também estar lado a lado com os outros.


MFM - No Brasil, ainda nos deparamos com a pouca visibilidade de mulheres no mercado editorial, considerando que grande parte dos livros publicados pelas grandes editoras ainda são escritos por homens cis, brancos e héterossexuais. Todavia, observamos, atualmente, o surgimento de projetos como o “Leia mulheres”, desenvolvido em vários estados no país e que incentiva a leitura de livros escritos exclusivamente por mulheres. Vemos, também, a emergência de editoras independentes que divulgam as produções dos grupos minoritários brasileiros (mulheres, negros, lgbt+). Nesse sentido, você poderia nos relatar sobre a experiência de ser mulher, editora, inserida nesse mercado editorial brasileiro?


MCF - É uma pergunta difícil de responder não porque não saberia o que dizer, e sim porque tudo o que eu faço é inseparável de ser mulher, das alegrias e dos desafios que isso me traz. Adoro ser mulher, o que, longe de ser algo pacificado, é uma luta e uma invenção. As questões que me proponho pensar na editora, desde as temáticas dos textos até o tempo do trabalho, tudo isso de algum modo é inspirado na mulher que vou me tornando e que tenho tentado que se desvie dos destinos da frustração e da amargura que tantas vezes me parece estarem à nossa espera no futuro. É engraçado que uma vez li num livro da escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol que uma mulher dizia aos seus visitantes: “não é tu que me importa, é o seguinte”. Demorei anos para entender alguma coisa nesta frase, e outro dia imaginei que nela está uma das linhas de forças femininas que atuam em mim: importa a continuidade, não do mesmo, mas a continuidade variada da vida, o seu devir, os muitos modos como tudo continua. Esta confiança na vida, como vejo, é qualquer coisa de muito feminino e também infantil. Lembra da Ana Cristina César no poema “Cartilha da cura”? “As mulheres e as crianças são as primeiras que/ desistem de afundar navios”.


MFM - Na reportagem Maternidade e criatividade, de 05 de maio de 2020, realizada pela Gianni Paula de Melo, você diz que “desde que você foi mãe, tudo está noutro lugar, e para onde olho encontro questões que a maternidade trouxe para o meu trabalho”. Como a maternidade foi capaz de transformar o seu processo criativo de escrita? Conte-nos um pouco sobre a ideia e a experiência da oficina Maternidade e escrita?


MCF - A maternidade instaurou uma gagueira na minha voz. Não é a primeira vez que isso me acontece, ainda que nunca tenha sido tão forte como agora. Quero dizer com isso que perdi boa parte do que imaginava saber sobre o mundo e sobre mim, minhas narrativas caíram por terra e como um torrão se espatifaram. Tenho me exercitado por encontrar outras vozes, outros modos de dizer, mirando um pouco sem saber. É como se eu não soubesse o que dizer e ao mesmo tempo não pudesse me desviar de dizer. E isso, claro, no tempo que me resta para outras coisas que não cuidar das meninas, do trabalho, da casa, etc. Ainda assim, tem sido angustiante e divertido, maravilhoso e sofrido. A ideia da oficina de escrita e maternidade é, de novo, apostar em fazer isso – pensar, ler, escrever – juntas. Já houve algumas edições e em todas me emocionei muito com o que as mulheres têm a dizer. Dizer de si, estar à escuta umas das outras, escrever – é isso o que fazemos na oficina, e tem imenso sentido para mim.


MFM - Nesse ano de 2020, lemos alguns artigos que demonstravam como a pandemia de coronavírus no Brasil afetou (e tem afetado) fortemente a produção científica das mulheres, gerando um cenário em que mais da metade das mulheres com filhos deixou de entregar artigos, enquanto apenas 38% dos homens com filhos (aproximadamente) apresentou a mesma queda de produção. Você poderia compartilhar conosco sua experiência relacionada à maternidade e às suas atuações profissionais em tempos de pandemia?


MCF - Talvez não haja outra espécie no mundo que tenha tanta certeza de que vai continuar apesar de tudo (da destruição do planeta inclusive) e tão pouco cuidado e amparo com as crianças. Ninguém está nem aí para o perrengue que as mães vivem, digo isso do ponto de vista das instituições e do mercado, dos ambientes de trabalho, etc. Imagina que há gente que protesta por ver uma mulher amamentando em público! É inacreditável como esse começo precário, mágico, fabuloso e terrível da gestação e nascimento das crianças é denegado. Por aqui, tenho me desdobrado em muitas, e quase sucumbido muitas vezes. Arranco alguns minutos para mim, e isto tem sido fundamental. Confio muito na minha rede de apoio, e nas mulheres com quem luto. Outro dia li: “Todos os nossos filhos são a vanguarda de um reinado de mulheres que ainda não foi estabelecido” – Audre Lorde.


MFM - Por fim, há algum texto, alguma proposta de escuta possível nestes tempos, que você indica para as leitoras da Revista Mulheres do Fim do Mundo?


MCF - Há pouco tempo ganhei de uma amiga, que também é editora na Chão da Feira, a Júlia de Carvalho Hansen, um livro incrível: Irmã outsider, de Audre Lorde (Tradução de Stephanie Borges. Belo Horizonte: Autêntica, 2020).

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