Revista Mulheres do Fim do Mundo - Muito obrigada pela disponibilidade em conceder essa entrevista! Você é professora de Literatura e trabalha no mesmo colégio desde 2007; gostaríamos que você falasse um pouco sobre sua trajetória profissional.
Duda Salabert - Eu sou professora de literatura. Dou aula há 20 anos. Nos últimos treze anos eu trabalho no colégio e pré vestibular Bernoulli, que é considerado um dos melhores os colégios do Brasil, e também atuo na educação popular, onde criei aqui em Belo Horizonte o Transvest, que é uma ONG que oferece educação gratuita para travestis e transexuais da capital. Em 2006 nós criamos por essa ONG a primeira casa de acolhimento de pessoas transexuais em situação de rua. A ideia é justamente oferecer educação como ferramenta de transformação de vida e inserção de pessoas transexuais em espaços de poder, especificamente a universidade.
Revista MFM - Em 2018 você se candidatou ao Senado por Minas Gerais e obteve mais de 350.000 votos. Você optou por não se afastar de suas atividades docentes durante o período de campanha. Gostaríamos que você falasse um pouco sobre esse período e essa decisão. O que te motivou?
Duda Salabert - Eu não me afastei do emprego para evidenciar, deixar claro que sou professora. Mesmo que um dia eu ocupe algum cargo político, não deixarei de dar aula, porque minha profissão é a docência. Sobre o período referido, minha candidatura foi bastante complicada porque, quando eu lancei minha pré-candidatura, menos de 24h depois aconteceu a execução da Marielle Franco, que me fez questionar se eu deveria continuar, ou não, na vida política. Mas, depois de uma reflexão, eu concluí que, por ela, Marielle, e pelo grupo de que faço parte, que é um grupo extremamente vulnerável, é necessário que eu mantenha meu corpo na frente dessa luta política.
Quando eu oficializei a candidatura, publiquei nas minhas redes sociais uma foto em que eu estava com uma blusa com quatro palavras que incomodam muitos setores da sociedade. Estava escrito: professora, travesti, lésbica e vegana. Quando lancei essa foto, recebi inúmeros discursos de ódio, porque parte da família Bolsonaro compartilhou essa minha publicação e então meu instagram recebeu, em menos de uma hora, mais de 5 mil mensagens de ódio. O próprio instagram bloqueou minha conta no periodo, de tantas mensagens de ódio que eu recebi. Não satisfeitos com essas mensagens que eu recebia, esses grupos bolsonaristas começaram a avaliar negativamente a página do facebook do colégio em que eu trabalho, começaram a mandar email pro colégio pedindo minha demissão, começaram a querer organizar manifestações na porta da escola para que eu fosse demitida. Eu continuei na luta e os alunos, na época, compraram essa briga pela minha defesa. Eu sabia que a chance de eu ser demitida era muito alta e sabia também que, sendo demitida, dificilmente um colégio me recontrataria, porque 90% das transsexuais do país está na prostituição. Isso derruba essa narrativa mentirosa e falaciosa da meritocracia, porque, se existisse meritocracia, eu estaria no apogeu da minha profissão e, sendo demitida, iria chover propostas de emprego. Fiz letras, cursei um pouco de antropologia, estou fazendo gestão pública, dou aula há vinte anos, estaria no apogeu da minha profissão. Mas, tenho certeza que, dificilmente, um colégio chamaria uma travesti para dar aulas. Há vinte anos, antes de iniciar minha transição, teria mais chances de trabalho do que hoje.
Mesmo recebendo essa quantidade de discurso de ódio, fazendo a campanha e dando 55 horas de aulas por semana, fiz uma campanha com poucos recursos financeiros – foram R$15.690. É importante lembrar que as campanhas para Senado normalmente são campanhas milionárias. Por exemplo, a campanha da Dilma Rousseff foi 4 milhões de reais, a de Senadores eleitos também foram campanhas milionárias. Eu consegui ser votada em todos os municípios de Minas Gerais, que são 853, me tornei a pessoa mais votada na história do PSOL em Minas Gerais, como também a quarta mulher mais votada da história das eleições nos último 40 anos em Minas Gerais.
Revista MFM - Em abril de 2020, quando começamos a trabalhar nos primeiros esboços para a construção da Revista, não tínhamos noção de que ainda estaríamos convivendo com as dificuldades, limitações, inseguranças e os surtos desencadeados pela pandemia e o distanciamento social. Gostaríamos que você falasse sobre sua rotina como mãe, professora e ativista nesse período tão crítico.
Duda Salabert - Eu ando bastante exausta porque além de ter que tomar conta da minha filha, dar faxina, cozinhar, cuidar dos animais aqui de casa, há ainda o trabalho como professora e as escolas nesse contexto de pandemia estão ou querem transformar professoras e professores em youtubers, cuja linguagem é completamente diferente duma linguagem em ambiente escolar. Então nós temos que aprender sobre iluminação, sobre edição de vídeo, sobre sonoplastia, sobre cenário e nós temos que criar isso sem apoio nenhum das escolas. Vários professores estão se endividando, como eu também: tive que comprar uma câmera melhor, tive que comprar jogo de iluminação. Isso num contexto em que deveríamos estar juntando dinheiro, porque é uma crise econômica nunca antes vista na história e nós estamos nos endividando. Pra mim ainda assume um contorno mais complexo porque eu tenho que conseguir energia pra fazer e organizar minha candidatura. Eu estava pré candidata a prefeita da cidade e agora só estou pré candidata a vereança, então é bastante difícil.
Revista MFM - Dados anuais divulgados pela ANTRA e pelo IBIT nos traz números alarmantes sobre a precariedade e violência vivenciadas por pessoas trans e travestis, sobretudo por mulheres trans no contexto da prostituição de rua. A transfobia, como um elemento estrutural, produz vulnerabilidades desde a idade escolar, mas na idade adulta, com a ausência de emprego formal, aprofunda-se substancialmente. Você é presidenta da ONG Transvest, que oferta cursos a pessoas transgênero e travesti. Você pode falar um pouco sobre como funciona esse projeto?
Duda Salabert - Segundo pesquisa da UFMG, 91% das travestis e transexuais de Belo Horizonte não concluíram o segundo grau, não concluíram o ensino médio, o que mostra que a escola tradicional muitas vezes é um espaço de reprodução de ódio, violência e intolerância contra as pessoas trans. A Transvest surge para tentar mitigar ou minimizar em âmbito local esse problema que é estruturante no país, que é o fato de a escola não ser aberta à diversidade. Então o que existe em Minas Gerais e no Brasil não é uma evasão escolar de pessoas transexuais, é uma expulsão escolar, já que o nosso projeto pedagógico, nosso projeto educacional acaba manifestando esse apagamento da diversidade em âmbito escolar. Então a Transvest é um projeto pedagógico que oferece educação gratuita para travestis e transexuais da cidade. Além da educação, nós também temos aulas de defesa pessoal, aulas de idiomas, teatro, libras. Criamos em 2016 uma casa de acolhimento de pessoas transexuais em situação de rua. E agora no contexto de pandemia, em que não há como a gente manter nossas aulas, porque na verdade com a pandemia não tem como dar aula virtual para as pessoas trans, porque a maioria delas nem celular tem, devido à situação de extrema vulnerabilidade, então o que nós fizemos foi criar a renda mínima trans. Nós estamos ajudando 120 pessoas travestis com o valor de 100 reais mensais, vamos manter isso até o final da pandemia, e 20 travestis com o valor de 200 reais mensais, essas 20 travestis são as travestis idosas. Nós consideramos travestis idosas aquelas que têm acima de 35 anos, porque a expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil não supera 35 anos.
Revista MFM - Ainda sobre a questão do trabalho, mas fazendo uma conexão com o campo da cultura. Em 2016 o espetáculo Gisberta trouxe à público uma ampla discussão sobre transfake, inclusive com a ação de grupos organizados, como Coletivo T e o Monart (Movimento Nacional de Artistas Trans). Na chave da reivindicação por real visibilidade e empregabilidade nos meios artísticos e culturais, foi feito o Manifesto Representatividade Trans em 2018. Você poderia fazer uma análise sobre esse debate hoje, considerando os avanços resultantes da luta social organizada e os impactos reais nos contratos e na recepção do público?
Duda Salabert - Eu fui uma das fundadoras do Monarte e aqui em Belo Horizonte eu debati publicamente com o Luís Lo Bianco, o ator que interpretou Gilberta, e mostrei para ele as críticas que o movimento trans tem em relação ao transfake e ao fato de que peças como a dele, assim como outros filmes tematizam as nossas histórias, mas não empregam nenhuma pessoa trans desde a faxina até ao elenco. Essas peças reproduzem o tanto da transfobia que existe na sociedade, porque viram as costas para o fato de que 90% das travestis transexuais do país estão na prostituição e que a arte é um espaço de empregabilidade, mas cujas portas estão fechadas para nós e privilegiando aqueles que já são privilegiados. É um debate que não avançou em âmbito nacional, porque com a conjuntura da vitória do governo Bolsonaro e a ascensão dos movimentos ultra reacionários, junto à direita no país, hoje eu acredito que é difícil levantar esse debate com a sociedade. Nós temos que debater hoje, estamos debatendo hoje, ainda “escola sem partido”, estamos debatendo a questão de não censurar a arte, manifestações artísticas que tematizem questões LGBT. Então acredito que os próximos anos vai ser difícil a gente avançar esse debate, porque houve, de certo modo, um retrocesso de consciência no âmbito público, na esfera pública, devido à ascensão desses movimentos de direita que reproduzem o discurso de intolerância e ódio contra as pessoas trans. Então hoje a nossa luta é para nos manter vivas no plano concreto. Eu acho que o debate no espaço da arte ainda é muito distante da realidade que nós estamos.
Revista MFM - Em entrevista à Revista Veja, em agosto de 2018, você disse que escolheu se candidatar ao Senado como “provocação” por conta do “caráter simbólico” já que “Senado, na sua etimologia significa ‘senhores’”. Essa provocação surtiu o efeito que você esperava? Qual sua avaliação sobre a organização das lutas sociais no contexto da pandemia, em especial aquelas que dizem respeito a mulheres e pessoas transgênero? O que podemos esperar, nesse sentido, para os próximos anos? Ainda: quais os limites e possibilidades para as lutas das mulheres e das pessoas trans nesse contexto de autoritarismo crescente e de aumento da polarização política?
Duda Salabert - Em 2018, o PSOL de Belo Horizonte me convidou para disputar o governo do Estado, eu rejeitei. Me convidou para disputar para Deputado Estadual e Federal, eu também rejeitei. Se eu tivesse disputado, possivelmente, eu teria ganho. Eu fiz três vezes mais votos que o Deputado Federal eleito Aécio Neves. Mas aceitei disputar o Senado, por entender que a minha candidatura assumiria um contorno simbólico. E nesse contexto de crise, é importante a gente disputar o simbólico. É no simbólico que mora tudo aquilo que não é concreto, tudo aquilo que nos humaniza. É no simbólico que está a fé, os sonhos, as utopias, as paixões, o amor, que são elementos essenciais para ampliar a nossa humanidade. Se a palavra senado significa senhores, na sua etimologia, ter uma travesti querendo disputar o cargo de senhores, seria extremamente simbólico. A idade mínima para disputar esse cargo, até a última eleição, era 35 anos. 35 anos é a expectativa de vida de uma pessoa transexual no Brasil. E, além disso, o Senado desde a sua origem, sempre foi ocupado por pessoas moralistas. E como meu corpo que é lido como um corpo imoral, rivalizar esse espaço é mais do que rivalizar um cargo político, é rivalizar também o conceito de moralidade. Por isso aceitei disputar e tive este resultado positivo. Um deles foi saber que em qualquer lugar, em qualquer cidade ou município de Minas Gerais, que eu for, eu sei que naquele espaço pelo menos 2% daquele município ou cidade votaram e se permitiram ser representada por uma pessoa transexual. Essa é uma vitória de consciência, porque o que muda o mundo é a construção de novas consciências.
Muitas pessoas me dizem: “Duda, meu pai não me aceita, não; mas votou em você”. E eu respondo: “Seu pai te aceita sim, o que ele tem dificuldade é de aceitar os próprios preconceitos. E seu pai não votou em mim, não; votou nele mesmo, dizendo que partir daquele dia, ele iria olhar a diversidade de outra forma”. E é isso que nós temos como resultado positivo, saber que pelo menos 2% de qualquer cidade de Minas Gerais ampliou a consciência. E foi uma candidatura em que eu estava disputando não eram votos, mas sim consciências. Porque nossos sonhos não cabem nas urnas. Nesse contexto de pandemia atual, fica bastante difícil à gente mobilizar e organizar a luta. As lutas políticas. Porque nossa maior luta hoje, eh por sobrevivência. Sobretudo, porque a maioria das pessoas transexuais no Brasil não conseguiu ter acesso ao auxílio emergencial, por causa da burocracia do governo federal. Muitas transexuais não têm documentos, muitas não têm celular, outras não sabem ler. Então, é uma luta por sobrevivência. E pós-pandemia, eu acredito que esse cenário será agravado, porque se espera que nosso PIB, neste ano, no melhor dos cenários, fique - 10. Seria o pior momento econômico da história do Brasil, nunca antes visto. O pior momento da história do sistema capitalista.
Nesse contexto de crise aguda do capitalismo, a gente sabe que é a população que mais sofre é a população mais vulnerável, que é justamente a população de travesti e transexual do país. Cuja expectativa de vida já não superava 35 anos, isso num contexto que em que economia estava melhor, imagina agora pós-pandemia. Então, sabemos que não vão ter políticas públicas para as pessoas trans. Os governos vão tentar retirar e desmontar estruturas que buscam dar suporte à população LGBT. Então, acredito que o pós-pandemia, a melhor ferramenta que nós temos é a solidariedade colocar em prática o aforismo “ninguém solta à mão de ninguém”.
Revista MFM - O transfeminicídio é um termo relativamente novo nas lutas sociais e, entre outras coisas, contribui para articular duas pautas importantes: a dos feminismos e as do movimento LGBTQIA+. Você poderia comentar um pouco sobre esse termo?
Duda Salabert - É importante a gente dá visibilidade ao termo transfeminicídio por diversos fatores. O principal deles é mostrar que há uma especificidade no crime contra as mulheres transsexuais. Não podemos enquadrar e colocar o crime contra pessoas transsexuais no mesmo patamar do feminicídio, porque há diferenças. Por exemplo 80% dos assassinatos contra pessoas transsexuais no Brasil ocorrem com uma violência exagerada, uma violência hiperbolizada, que significa corpos esquartejados, paus enfiados no ânus, o que difere do feminicídio. Além disso, mais do que a metade dos assasinatos contras pessoas transsexuais ocorrem no espaço público, o que difere também do feminicídio, e há outras diferenças também. O importante de mostrar é que dentro do próprio feminino há uma hierarquia em que as mulheres transsexuais e travestis estão em situação de maior vulnerabilidade e mais expostas a violência do que as mulheres cisgênera. Daí a importância de mostrar e dar visibilidade ao transfeminicídio, mostrando que, no Brasil, o crime contra mulheres transsexuais, a maior motivação é o ódio contra a população transsexual. Tanto é que esses crimes em sua maioria ocorre com requintes de crueldade.
Revista MFM - A disponibilidade de tempo para os cuidados com os filhos é um tema abordado por você quando defende a ampliação da licença-maternidade no Brasil, que é restrito se comparado a outros contextos em relação à duração e às diversas configurações familiares. Quais reflexões esse contexto suscita em você sobre esse tema?
Duda Salabert - Até onde eu sei, eu fui a sua primeira mulher transexual do Brasil a efetivar a licença maternidade por 120 dias. Não foi fácil conquistar e garantir esse direito. Eu precisei de um advogado intervir, então eu trago já na minha experiência pessoal, na minha luta existencial uma defesa sobre a licença maternidade. Nós que somos mães sabemos que os 4 meses, ou seja, os 120 dias não são suficientes para o desenvolvimento pleno da criança. Então urge ampliar a licença maternidade no Brasil para que nossa legislação se aproxime a de outros países que são mais avançados nesse tema, que é importante para a família brasileira e, sobretudo, para a criança. Temos que pensar não somente na maternidade, mas também em legislações que garantam a manutenção e permanência das mulheres no mercado de trabalho após o fim da licença maternidade, porque 51% das mulheres no Brasil que trabalham deixam o mercado de trabalho após o fim da licença maternidade. Os motivos são vários. Desde a demissão, já que muitas empresas são administradas por pessoas machistas que vem a maternidade como um problema, mas também essas mulheres acabam deixando o mercado de trabalho por entender a importância da amamentação ou, até mesmo, por falta de creches no Brasil. Segundo o IBGE um terço das crianças de zero a 3 anos estão fora da creche por falta de vagas. Então, é um problema estruturante no país no que se refere à questão ligada à maternidade e cabe aos políticos debaterem essas questões, mas como Congresso Nacional é ocupado em sua maioria por homens ,eles não entendem a relevância dessa questão. No nosso congresso apenas 14%, se não me engano, dos cargos são ocupados por mulheres. E vamos lembrar que tivemos aqui em Minas Gerais uma deputada estadual eleita que ao ter um filho descobriu que não havia licença maternidade para deputadas aqui no Minas Gerais e isso se repete, se reproduz em várias câmaras legislativas no país, o que mostra todo o machismo estruturante que há na nossa sociedade.
Imagem da capa: foto de perfil no Twitter @DudaSalabert