A quem está assegurado o direito de parir em paz?
Gabrielle Dal Molin*

Logo da Associação Potiguar de Doulas (APD)
Toda mulher deve ser mãe. É isto o que nos fala a sociedade por meio da cultura, da família, da nossa educação, que desde cedo nos impõe um papel de gênero pautado em condições biológicas o qual temos ao nascer. Essa mesma sociedade, no entanto, retira o direito “natural” de mulheres trans serem mães e empurra para uma condição de anormalidade os corpos biológicos que podem gestar, mas que não performam feminilidade. Homens trans deveriam assim “voltar” a sua condição de nascimento, mulheres cis lésbicas mais masculinizadas também não são olhadas com o mesmo respeito, mesmo já exercendo a maternidade.
Essa mesma sociedade, dessa vez por meio da medicina, da farmacologia, de suposto acúmulo clínico, recai sobre o corpo gestante de forma a desumanizá-lo, como sendo apenas mais uma gestação à qual devem se aplicar os protocolos, sem que haja escuta, diálogo, acolhimento, personalização de um processo que é extremamente individual. Quando falamos em violência obstétrica, portanto, estamos falando de violências que começam desde a gestação, culminam no trabalho de parto e continuam após o nascimento.
Quando o acompanhamento de uma gestação de baixo risco vai se basear em inúmeras ultrassonografias desnecessárias para pautar o caminho até a cesárea eletiva, quando a OMS só recomenda três desses exames, já é violência obstétrica. Quando o/a médico/a pronuncia as palavras “quadril estreito”, “não tem passagem”, “o cordão está enrolado no pescoço do bebê”, para justificar cesárea sem nenhuma evidência científica, já é violência obstétrica. Quando mulheres com nomes e histórias são chamadas de “mãezinhas”, quando homens trans gestantes são tratados no feminino, quando se impede que acompanhantes estejam com quem vai parir, quando se nega a presença da doula, tudo isso é violência obstétrica. Sem falar no que já se costuma entender como violência como, limitar movimentação durante o trabalho de parto, negar alimentação/água, amarrar membros, subir na barriga, agressões verbais, fazer procedimentos como episiotomia, sem autorização, separar o bebê da mãe assim que nasce.
E como sempre no Brasil, quem sofre mais esse tipo de violência são as mulheres pobres e pretas. Elas “que não sentem dor”, “que na hora de fazer não gritaram”, “que são mais fortes”, “que não precisam de analgesia”. Elas que muitas vezes não conseguem fazer um bom pré-natal, pois não têm tempo, trabalham até o final da gestação, ou por falta de acesso à unidade básica de saúde. Elas que não têm condições de arcar com custos de outras profissionais que auxiliam na gestação e no parto, como doulas, fisioterapeutas, psicólogas, enfermeiras obstétricas particulares. Elas que não têm dinheiro para pagar um parto domiciliar planejado, que as livraria de uma série de procedimentos violentos.
É importante dizer que, quando falo sobre essa situação, não estou falando que é o SUS que não presta um bom serviço e que o setor privado está livre de problemas. É sabido que a porcentagem de cesáreas nos planos de saúde variou em 2018, de 70 a 100% no Brasil (1), que as violências cometidas por médicos/as e enfermeiros/as também acontecem muito no setor privado, as quais os interesses econômicos veem o corpo gestante como fonte de renda e não como alguém que tem subjetividade, sentimentos, sente dor. Quanto ao sistema público, apesar de bons programas voltados à humanização, arrisco dizer que os maiores problemas que ele apresenta e que se revertem na desumanização das gestantes é a superlotação dos hospitais, as más condições de trabalho para os/as profissionais e a falta de formação continuada.
Contudo, a grande questão é histórica, é cultural. Os corpos das mulheres sempre foram vistos como objetos públicos em nossa sociedade, em contrapartida, a medicina sempre foi pensada por homens cis. Mesmo sendo exercida também por mulheres há várias décadas, as políticas públicas são pensadas por homens, pois eles ainda são maioria absoluta nos cargos legislativos e executivos. Tal desequilíbrio se reverte em demora na adoção de atendimentos mais humanizados, no veto à enfermagem poder atender partos de baixo risco, na falta de olhar para a gestação, parto e puerpério que realmente compreenda esse processo tão delicado.
A nefasta tríade, capitalismo-racismo-patriarcado, impõe condições péssimas para parir em nosso país. Quem tem condições financeiras e capital cultural, procura serviços terapêuticos particulares, frequenta rodas de pré-natal coletivo, se informa, foge de equipes cesaristas, consegue ter uma boa experiência. E quem não tem? Resta seguir o caminho que lhes é apresentado como único e cujo desfecho pode ser traumático. O chamado é então, para que os movimentos sociais abracem a nossa luta pela humanização, não só que os feminismos façam isso, mas que todes que pensam em mudanças na sociedade, pois não há como elas acontecerem se não mudarmos a forma como se chega a esse mundo.
* Gabrielle Dal Molin é professora de História da Rede Estadual do RN, mestre em Antropologia, doula, mãe e escreveu esse texto a pedido da Associação Potiguar de Doulas, da qual é membra.
Notas do texto:
(1) Informação retirada de: http://www.ans.gov.br/planos-de-saude-e-operadoras/informacoes-e-avaliacoes-de-operadoras/taxas-de-partos-cesareos-por-operadora-de-plano-de-saude