A trajetória de uma pesquisa(dora) negra
Amanda C. E. de Souza[1]

Costumo imaginar minha mãe depois de um dia cansativo de trabalho lendo “Casa Grande e Senzala”, entendendo um pouco sobre relações escravagistas e sua crueldade à brasileira. Minha avó, no final da tarde, lendo Foucault, quantas discussões nós poderíamos ter sobre as relações de poder que envolvem e disciplinam os nossos corpos. Essa situação hipotética incita-me a pensar sobre como nosso corpo está estabelecido em espaços de poder, reivindicando uma análise interior e exterior, pois apesar desse processo imaginativo estar bem distante das mulheres e homens que conheço, pois precisam e são induzidos a se dedicar a uma vida de trabalho, nós chegamos ao Ensino Superior. Nesse ensaio, busco mapear a trajetória da escrita monográfica que atende ao apelo de falar abertamente sobre a vida de intelectual negra associada ao ofício de historiador(a).
A entrada no curso de História através da Política de Ações Afirmativa (cotas) do governo federal é uma medida que tem por objetivo tornar o espaço universitário mais inclusivo[2]. As ações por uma educação emancipatória no contexto das discussões sobre diversidade, desigualdade e educação trazem como possibilidade historicizar, ressignificar e politizar o conceito de raça, explicitando a suas transformações ao longo do tempo. Nesse sentido, abrem-se caminhos de intercomunicação e novas vias de diálogos, deslocando o eurocentrismo dentro de nossas referências bibliográficas, posto que as questões de pesquisa também se aproximam do universo destes estudantes.
Com intuito de entender o preconceito racial, aprofundei o estudo sobre os negros brasileiros na historiografia, buscando a construção social enfrentada pelo grupo articulado a uma abordagem histórica. A historiografia brasileira sobre o sujeito escravizado encontra-se em constante elaboração e reelaboração. A partir dessa investigação surgiu a vontade de participar da escrita desse processo, visto que os estudos das relações escravagistas continuam a informar a maneira como negros e negras são considerados dentro das hierarquias de sexo/raça/classe.
Pensar em homens e mulheres negros exercendo ofícios e atividades para a própria subsistência, seus processos de trabalho e sua experiência de vida na segunda metade século XIX, me permitiu trilhar o caminho para dar respostas às minhas indagações enquanto intelectual negra historiadora, reivindicando a ampliação do conceito de classe trabalhadora para incluir trabalhadoras e trabalhadores escravizados(as). Este tornou-se o problema que norteou a pesquisa, assim foi proposta a análise sobre a organização do trabalho escravo de aluguel na fazenda de Santa Cruz de 1862 a 1868 na documentação que versa sobre os registros de aluguéis de escravizados.[3]
A pesquisa exploratória da documentação e bibliografia sobre o objeto da pesquisa foi tomando forma a partir de minha participação no grupo PET- História (Programa de Educação tutorial) UFRRJ, cujo projeto original intitulado “Dos arquivos para a sala de aula” busca a compreensão da construção do conhecimento histórico a partir do ensino e aprendizagem no trabalho com fontes e construção do próprio acervo documental. A base desse acervo são os documentos e registros paroquiais da Cúria de Itaguaí. Assim, o trabalho de pesquisa do grupo tem como foco a história de duas regiões que compuseram a Fazenda de Santa Cruz[4] (Itaguaí e Seropédica), realizando a sistematização e análise de fontes sobre a região e debates historiográficos sobre o tema. A bibliografia apresentada, principalmente o livro “Santa Cruz: de legado dos jesuítas à pérola da coroa” proporciona uma dimensão temporal sobre a estrutura da Fazenda de Santa Cruz e os caminhos para aprofundamentos do estudo da região.
Foi realizada a busca de fontes sobre os escravizados da Imperial Fazenda de Santa Cruz no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, nos conjuntos documentais constituídos pelo Fundo Nacional da Fazenda de Santa Cruz, na qual se encontra o dossiê: “Alugados a diversos”, na série: “Escravos e subsérie: Comércio e Aluguel de Escravos” [5]. Em seguida, foi feita a digitalização completa da fonte estudada e, finalmente, procedi a composição do banco de dados em conjunto com a leitura das categorias de informações da fonte.
Percebi que colocando alguns de meus questionamentos em diálogo com aquela fonte poderia responder alguns deles, pois a Fazenda de Santa Cruz apresentava-se como um grande espaço de relação social e agenciamento dos sujeitos escravizados. Na análise, dois caminhos foram seguidos de modo a compreender aqueles sujeitos: o primeiro, historiográfico, em que a Fazenda de Santa Cruz e sua administração é interpretada em três momentos específicos: Jesuítica, Real e Imperial, sendo o trabalho escravizado de aluguel relacionado à estrutura administrativa, à regulamentação e à fiscalização do trabalho escravo.
No segundo momento, buscamos explorar a documentação sobre aluguéis de escravizados a partir da leitura, interpretação e análise dos registros de aluguéis a partir do banco de dados, utilizando como metodologia a abordagem da micro história, prática essencial ligada ao estudo intensivo do material. Interpretamos a documentação através das seguintes categorias presentes na própria fonte: “época do aluguel”; “nome dos escravos”; “classe de ofício”; “nome dos que alugaram”; “preço do aluguel”; “nome dos fiadores”; “época de vencimento”; “observações”; “dívidas e pagamentos”. A compreensão dos significados destas categorias permitiu entender como os contratos de aluguéis organizavam as relações de trabalhos dos escravizados na Fazenda de Santa Cruz.
Os historiadores e historiadoras, profissionais treinados a um sofisticado processo de observação e análise na produção de conhecimento, podem contribuir para uma educação, cujo princípio pode ser entendido como uma ecologia de saberes, reconhecendo a diversidade epistemológica, a diversidade cultural e as pluralidades de formas de compreensão. Uma vez que intelectuais negros(as) se apropriam das ferramentas analíticas do ofício de historiador(a), desempenhando papel fundamental na tomada de consciência, questionando e propondo alternativas aos fundamentos do ofício, deixam claro que estes precisam ser revistos e atualizados diante do novo contexto.
A principal motivação para tornar-me uma intelectual é desenvolver uma pesquisa negra, uma opção que não deixa para trás a marginalidade e o status periférico que afeta a maior parte do grupo de acadêmicos e intelectuais negros e negras. No entanto, tem um impulso básico na insurgência que desafia os pesquisadores(as) a irem além de uma compreensão instrumental do papel do negro(a) no passado, rejeitando modelos prontos, buscando a compreensão das lógicas próprias dos homens e mulheres escravizados(as), reconhecendo suas estratégias e ações.
O processo de escrita trouxe-me alegria em aprender, nutrindo o meu intelecto com entusiasmo para seguir com autonomia para elaborar um discurso do negro sobre a sociedade escravagista, não como inferior, mas como sujeito histórico. Não estou sozinha, apesar de grande parte do trabalho intelectual se desenvolver em isolamento, serei sempre grata àqueles(as) que avaliaram criticamente a pesquisa, acreditando em minha capacidade. É impossível o florescimento de intelectuais negras se não tivermos uma crença essencial em nós mesmas, no valor de nosso trabalho e um endosso correspondente à nossa volta em forma de apoio, como nos faz lembrar bell hooks no artigo Intelectuais Negras.
Mais que um requisito para o acesso ao ensino superior de qualidade, transformei a escrita em um anseio apaixonado de produção de conhecimento, permitindo a experiência de comprometer-me com o resgate de minha história e recriar minhas potencialidades enquanto Historiadora.
Referências:
ENGEMANN, Carlos; AMANTINO, Marcia (Ed.). Santa Cruz: de legado dos jesuítas a pérola da Coroa. Eduerj, 2013.
HOOKS, bell. Intelectuais negras. Estudos feministas, v. 3, n. 2, p. 464, 1995.
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro. LeBooks Editora, 2019.
POPINIGIS, Fabiane; TERRA, Paulo Cruz. Classe, Raça e a História Social do Trabalhador no Brasil (2001-2016). Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 2019, v. 32. n.. 66, p. 307-328, 2019.
Notas
[1] Graduanda em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, associada ao Programa de Educação Tutorial em História - PET-História/UFRRJ. A pesquisa intitulada: “Escravizados da Imperial Fazenda de Santa Cruz: Alugados a Diversos e a Si. Rio de Janeiro (1862-1868)” foi orientada pela Professora Doutora Fabiane Popinigis (UFRRJ). Tem experiência de pesquisa na área de História da Fazenda de Santa Cruz com ênfase nos seguintes temas: Escravidão; História do Trabalho no Brasil; Registro de Aluguel de Escravizados.
[2] A Lei nº 12. 711/2012, garante a reserva de 50% das matrículas por curso e turno nas Instituições Federais de educação superior a alunos oriundos integralmente do Ensino Médio público, levando em conta sua renda familiar e também um percentual mínimo correspondente ao da soma de pretos, pardos e indígenas.
[3] A Fazenda de Santa Cruz representava “com suas deus léguas de quadras”, o que atualmente compreende o bairro de Santa Cruz, parte do município de Barra do Piraí, Itaguaí, Mendes, Nova Iguaçu, Paracambi, Engenheiro Paulo Frotin, Piraí, Rio Claro, Vassouras e Volta Redonda.
[4] Arquivo Nacional; Fundo Fazenda Nacional de Santa Cruz. Registro de Aluguel de Escravos da Fazenda Imperial de Santa Cruz, 1862-1868.
[5] Arquivo Nacional; Fundo Fazenda Nacional de Santa Cruz. Registro de Aluguel de Escravos da Fazenda Imperial de Santa Cruz, 1862-1868.