Esta coluna objetiva relatar casos de machismo e de misoginia que permeiam tanto as nossas relações pessoais afetivas, como as relações profissionais acadêmicas. Algumas vezes, é através do espelho que a gente se reconhece. Caso queira enviar algum relato, contate-nos. Partimos de casos que vivenciamos - direta ou indiretamente. Procuramos ao máximo preservar a identidade das pessoas envolvidas. Para preservar a identidade nos casos relatados, optamos por usar o formato da correspondência pessoal, a fim de manter o tom de intimidade com o qual muitas vezes nos descobrimos e relatamos essas situações entre nós. Assinando anonimamente as cartas, optamos por usar como pseudônimos os nomes de duas historiadoras brasileiras conhecidas pelos casos de misoginia perpetrados contra elas: Beatriz, mulher negra, foi morta por meter a colher em briga de marido e mulher; e Alice, cuja banca para professora catedrática faz parte da história da historiografia brasileira. Nossas postagens serão mensais e garantimos o anonimato na produção dos relatos. Caso queira enviar algum relato, por favor, envie um e-mail para: cartas.ao.espelho.mfm@gmail.com.
Em nossa terceira edição, do mês de setembro, trazemos dois textos denunciativos e que dialogam entre si. Os textos foram escritos por duas colaboradoras da Revista Mulheres do Fim do Mundo. Excepcionalmente, e com a expressa autorização e desejo das autoras, optamos por não ocultar suas identidades Confiram!
#alertagatilho #denúncia #abusos

Querida Beatriz,
Te escrevo para desabafar sobre uma relação abusiva que vivi alguns anos atrás. Finalmente consegui coragem para escrever. Escrever sobre isso é um processo difícil, mas também chega a ser terapêutico. Pois bem, nenhum homem é uma ilha. Tudo que eu faço, engaja a humanidade inteira. Sabe, minha amiga, essas frases, bastante conhecidas, me vieram à cabeça, soltas, quando tomei coragem para te escrever. Acho que vai ser bom elaborar o que vivi, colocar para fora, relatar minha experiência, meus sentimentos. Talvez minha experiência não caiba só a mim.
Você sabe, como muitas da minha geração (tenho 33 anos) cresci planejando ser uma mulher independente e “bem resolvida”. Com minha independência emocional e financeira, jamais me submeteria a ninguém, não me submeteria a nenhuma relação desigual ou de abuso. Só que a vida tem seus próprios descaminhos, não é? Cheios de curvas e bifurcações, cheio de roteiros inesperados. Há três, quatro anos, já não me lembro bem, me vi num momento de muita fragilidade. Insegurança profissional, insegurança existencial, e o Brasil, já desde aquela época, não ajudava. Nossa primeira presidenta sofria um golpe, movido por várias coisas - entre elas, muita misoginia. Com meu doutorado defendido e o país em ebulição, nada mais parecia certo para o meu futuro, eu vi o chão se abrindo sob os meus pés. Mas eu tava ali, aos trancos e barrancos, tentando viver, tentando não desabar, passando uns remendos quando algo se rasgava. Foi nesse momento que apareceu um homem.
Esse homem era cheio de si, sabe? Eu nunca tinha visto alguém tão seguro na minha vida. Ele tinha certeza de tudo. Certeza que tudo sempre sairia como ele tinha planejado, certeza de sua própria capacidade, certeza de suas ideias, nada o abalava. Nós nos aproximamos. Esse caldeirão de certezas parecia ser tudo que eu precisava naquele momento. Ele também demonstrava certeza de que queria ficar comigo. Me mandava mensagens o dia todo, me chamava, me elogiava. Rapidamente, ele começou a expor várias certezas sobre mim. Num primeiro momento apenas coisas “positivas”: “Por que você é tão insegura? Como assim você tem medo? Você é tão inteligente, todo mundo gosta de você, você sempre teve tudo!” (Como ele poderia saber que eu “sempre tive tudo”?) Ele não sabia nada da minha vida, mas já tinha montado um quadro completo. Aquilo me fascinava. Me dava um chão firme. “Você não precisa mais ter medo, insegurança”. “Cola comigo, você só precisa de alguém para te dar um norte, vou te dizer o que você deve fazer, vou te ajudar”. “Seremos um casal foda!”. “Tudo que eu precisava para ser mais foda do que já sou era uma mulher como você, você é meu troféu”. Sim, minha amiga, eu realmente escutei essas coisas.
Eu sabia, desde o iniciozinho, que algo estava errado, mas eu precisava daquela firmeza, sabe? Daquela potência e segurança. Até então, eu me sentia tão irremediavelmente desamparada, um horror. Com os meses de relação, as certezas sobre mim aumentaram. Só que agora não eram mais “elogios”: -- “Você é fraca”. “Você é ingênua”. “Você não sabe nada da vida”. Eu ouvia essas coisas todos os dias e começava a acreditar: “você é uma privilegiada, como você pode ficar triste?” “como você pode ter dificuldades profissionais?”. “Você precisa de mim, aqueles teus amigos não te servem para nada”. Daí em diante, a desconstrução de tudo que eu era, de tudo que eu tinha conquistado até aquele momento, até mesmo dos meus maravilhosos amigos, acontecia um pouquinho a cada dia. Às vezes o papo ficava mais agressivo: “eu odeio teus amigos e amigas, não me peça para conviver com eles”. Quando eu saía sozinha para encontrá-los, sabia que ia ter muita dor de cabeça depois. Ele não queria ver meus amigos, e também era um problema se eu os visse sem ele. Assim, para evitar o conflito, fui me afastando.
E, aos pouquinhos, fui me anulando, anulando… Cheguei a tirar um adesivo do Marcelo Freixo para sair de casa com ele porque, mesmo se posicionando também à esquerda, ele não queria que eu saísse apoiando um partido que não era o dele. Eu tirei o adesivo. Amiga, quando, na minha vida inteirinha, eu, mulher de classe média, escolarizada, feminista, imaginei que fosse me submeter a isso? Eu fui silenciada, censurada, agredida com palavras todos os dias. E, mesmo assim, quando ele arrumou um bom emprego em outra cidade, me mudei com ele. Eu quase desisti. Eu sabia que tudo estava muito errado, mas eu tinha vergonha de ter mais um “projeto de vida” desabando. Eu queria que aquilo “desse certo”. Com o tempo, especialmente quando eu conquistasse meu espaço profissional de modo mais efetivo, as coisas melhorariam. Era o que eu dizia para mim mesma.
Quando chegamos à nova cidade, passada a euforia inicial e o trabalho de organização da casa, os insultos e ofensas recomeçaram. Além dessas ofensas, eu comecei a ser controlada e julgada em cada um dos meus atos. Eu tinha que ir malhar todos os dias. Eu tinha que acordar muito cedo para estudar. Já que eu estava apenas com alguns alunos de francês à distância e passava a maior parte do tempo em casa. eu também tinha que ser a principal responsável pelos afazeres domésticos, claro. Ele ainda tinha sido muito legal de pagar uma moça uma vez na semana, “para você ter tempo de estudar”. Fiz meu primeiro concurso nesse novo lugar em que morávamos. Passei na prova escrita e fui eliminada após a prova aula. O que ouvi, foi: “você não sabe fazer prova aula, a culpa é sua”. Fiz outro processo seletivo, com análise de projeto de pesquisa e entrevista. Fiquei em segundo lugar, e ouvi: “como você pode ser assim, você não sabe fazer entrevista, você só faz merda”.
A partir de um determinado momento, comecei a me sentir um fantasma dentro daquele apartamento. Era como se eu tivesse sendo uma espectadora da minha própria vida, sabe? Eu tinha medo de fazer qualquer coisa que pudesse desagradar. Eu já não sabia o que fazer para agradar. Eu era criticada em tudo. Aquilo que era um abuso diário e constante passou a ser um assédio explícito. Eu passei a ser ameaçada. “Você tem que dar um jeito na sua vida”. Eu tinha um terceiro processo seletivo para fazer. Ainda não estava inscrita. Eu ouvi que eu tinha que passar, mas que com o meu currículo (“fraco”, assim como eu), ele tinha certeza que eu não passaria (eu tinha um doutorado defendido, eu tinha artigos publicados, eu tinha alguma experiência de aula). Eu não posso contar o fim desse episódio. Só posso dizer que não sofri agressão física, mas o nível de agressão psicológica chegou ao extremo. Juntei minhas coisas (quase nada) e fui para um hostel. Liguei para os meus pais, para os meus amigos e minhas amigas. Voltei para minha cidade. Consegui dois empregos e, depois, um terceiro, ainda melhor.
Eu ainda estou juntando os cacos, sabe? Acho que é um processo demorado mesmo. Mas eu sei que eu conquistei muita coisa depois dessa relação. Eu redescobri meu valor, eu voltei a escrever, a me posicionar publicamente e fui reconhecida por isso. Eu tenho muitas pessoas maravilhosas ao meu redor. Eu reconstruí muita coisa e ainda criei mais um monte de coisas novas. Eu sei que muitas mulheres não têm o apoio que eu tive. Elas tinham que saber que não estão sozinhas. Que nada do que eu passei, e que eu sei que muitas passam, é normal. Que está tudo bem terminar, mesmo quando a gente pensou que ia dar certo. A gente erra, faz escolhas ruins, todo mundo faz. É normal errar, é preciso saber romper, é preciso falar, soltar a voz, relatar, gritar se for preciso.
“Companheira, me ajuda, que eu não posso andar só. Eu, sozinha, ando bem. Mas, com você, ando melhor."
Obrigada por tua escuta.
Um beijo, minha amiga.
Fique bem.
Com carinho,
Alice.