A Cartas ao espelho objetiva relatar e publicar casos de machismo e misoginia que permeiam as relações pessoais, afetivas e profissionais de mulheres. Caso queira enviar algum relato, contate-nos. Partimos de casos que vivenciamos - direta ou indiretamente. Procuramos, ao máximo, preservar a identidade das pessoas envolvidas. Por isso, optamos por usar o formato da correspondência pessoal, a fim de manter o tom de intimidade com o qual muitas vezes nos descobrimos e relatamos essas situações entre nós. Assinando anonimamente as cartas, escolhemos usar como pseudônimos os nomes de duas historiadoras brasileiras conhecidas pelos casos de misoginia perpetrados contra elas: Beatriz, mulher negra, foi morta por meter a colher em briga de marido e mulher; e Alice, cuja banca para professora catedrática faz parte da história da historiografia brasileira. Nossas postagens serão mensais e garantimos o anonimato na produção dos relatos.
Caso queira enviar algum relato, por favor, envie um e-mail para: cartas.ao.espelho.mfm@gmail.com.

Querida Beatriz,
Este não é um relato inédito. Já o compartilhei com várias pessoas. As primeiras que me lembro foram meus irmãos, que, ambos, ignoraram o que tinham ouvido. Alguns anos depois, teimei e contei de novo ao meu irmão mais velho. Com o coração palpitante de quem só espera uma resposta e algum acolhimento, disse a ele que nosso pai havia me assediado em um bar afirmando que eu não era sua filha, mas uma mulher muito bonita. Tentando beijar com seus lábios molhados a minha mão, me desvencilhei, e ele, trôpego de bêbado, não se manteve em pé. O deixei então no chão do bar, sob os cuidados do dono.
Desta vez, me lembro bem da reação de meu irmão: me disse ele, que eu deveria perdoar.
Em meu aniversário ele me mandou ainda uma mensagem, me desejando, além dos parabéns, perdão.
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Me lembrei de um terapeuta holístico que, ao escutar a mesma história, me disse que eu "emanava uma energia de desejo para meu pai", não uma "energia de filha".
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Fico pensando que entre o perdão e a culpa não há uma diferença assim tão grande. A relação entre o perdão (o problema estava em mim por não perdoar) e "enviar energias sexuais" (a culpa por ser assediada era minha já que eu estava emanando energias de horizontalidade) é o fato de responsabilizar a vítima pela agressão sofrida.
Se te escrevo hoje, é inspirada por um caso de um conhecido cientista político que foi acusado de abusar de seu enteado adolescente durante anos a fio e ter sido protegido pela "família grande". Esse é, aliás, o título do livro escrito pela irmã da vítima - que denuncia e documenta todo o caso. A “família grande” era os amigos, a mulher, os parentes, os outros filhos, a extensa rede de intelectuais que frequentava a casa.
Se te escrevo hoje, querida amiga, é porque sei que a “família grande” pode contribuir com a conivência, com a negação, com o descaso, com a culpabilização, com o silêncio de abusos cometidos contra crianças e adolescentes, frequentemente praticados por alguém próximo, e que podem ter suas vidas destroçadas.
Mas a “família grande” também pode denunciar, acolher, amparar e, sobretudo, não silenciar. Acho que você me entende bem.
Ao tornar pública a família grande - como fez a autora do livro - podemos servir à proteção da vítima e evitar novos assédios. Podemos também dizer que não aceitamos, que a negação, a culpa e o silêncio não nos são mais suficientes.
Com carinho e esperança,
Júlia