A coluna Cartas ao espelho objetiva relatar e publicar casos de machismo e misoginia que permeiam as relações pessoais, afetivas e profissionais de mulheres. Caso queira enviar algum relato, contate-nos. Partimos de casos que vivenciamos - direta ou indiretamente. Procuramos, ao máximo, preservar a identidade das pessoas envolvidas. Por isso, optamos por usar o formato da correspondência pessoal, a fim de manter o tom de intimidade com o qual muitas vezes nos descobrimos e relatamos essas situações entre nós. Assinando anonimamente as cartas, escolhemos usar como pseudônimos os nomes de duas historiadoras brasileiras conhecidas pelos casos de misoginia perpetrados contra elas: Beatriz, mulher negra, foi morta por meter a colher em briga de marido e mulher; e Alice, cuja banca para professora catedrática faz parte da história da historiografia brasileira. Nossas postagens serão mensais e garantimos o anonimato na produção dos relatos.
Caso queira enviar algum relato, por favor, envie um e-mail para: cartas.ao.espelho.mfm@gmail.com.
Olá, minha querida Alice.
Quanto tempo não trocamos cartas, não é mesmo? Espero que por aí as coisas estejam bem. Já adianto que por aqui as coisas estão “sobrevividas”.
Chegamos na metade do ano. O mês de junho me rememoram os festejos juninos em São Cristóvão, as deliciosas comidinhas típicas, fogueira, quentão, brincadeiras, música… as cores, sabores e os sons do São João também me trazem saudades da infância em Sergipe, no Nordeste... Parece que tudo ganha mais cor quando irrompe os dias juninos. Junho também traz o dia dos namorados e nessa carta eu gostaria de fazer-te um desabafo sobre o amor.
Por esses dias tenho me pegado pensando: “qual é a cor do amor?”. Minha estimada amiga, parece um questionamento bobo motivado por todo apelo do amor romântico propagado nas proximidades e durante o dia 12 de junho. Porém, tudo parece ter maior profundidade quando esse questionamento parte de uma mulher negra, que se depara com a resposta (e constatação) ao seu próprio questionamento, como se fosse uma retórica. O amor tem cor? Sim. A branca.
O questionamento funda-se em histórias de vida e na observação de aspectos de afetividade da mulher diante da complexidade das relações heterossexuais. O tema do amor e da sexualidade nas relações homem e mulher perpassam a discussão sobre a questão do poder: o status dominante do elemento masculino em detrimento do elemento feminino. Acabamos recorrendo a explicações sociais, políticas e econômicas (sobretudo, enfatizando o papel do trabalho) como fator de resolução da desigualdade ou possibilitador do alcance de um igualitarismo entre os dois sexos. Desigualdade esta que se apresenta nos conflitos submissão x dominação, ativo x passivo, infantilização x maturação.
Quando falamos da mulher negra, principalmente, a situação referente às questões de gênero, passam a ser pensadas a partir de uma perspectiva que ressalta a condição racial. Ora, cai pra nós, querida Alice. Sabemos que os enfrentamentos das mulheres brancas não condizem com o das mulheres pretas desse país. A mulher negra, na sua luta diária durante desde os tempos de escravidão no Brasil, foi contemplada como mão de obra na maioria das vezes não qualificada. No século XIX, enquanto as mulheres brancas reivindicavam a ocupação dos espaços públicos, as mulheres negras já conheciam bem esse âmbito ocupando espaços subalternos... O espaço público legado às mulheres negras foi o espaço do trabalho escravo. Nessa perspectiva, se o lar era o ninho, guarda, proteção do que é puro, o trabalho fora do lar foi considerado a ameaça, o promíscuo. Era “o cabaré”, nas palavras da historiadora Margareth Rago. A mulher branca é separada do mundo do trabalho produtivo, ela pertence à economia doméstica. Até mesmo na emergência do capitalismo industrial no século XIX e de suas propagandas o termo “mulher” se tornou sinônimo de “mãe” e “dona de casa”, duas categorias negadas às mulheres negras. Devido à escravidão, a condição de propriedade e de coisa, a unidade de trabalho lucrativo colocava o homem negro e a mulher negra em par de igualdade. No entanto, a julgar pela ideia de feminilidade, em vigor no período oitocentista que enfatiza o papel das mulheres enquanto mães protetoras e donas de casa frágeis e amáveis, as mulheres negras eram consideradas uma anomalia em seu gênero. Mesmo com o uso dos seus úteros, colocados disponíveis à reprodução dos pés e mãos do sistema escravista no país, a condição de “maternidade” não as acompanhava. Para a mulher negra, não cabia a exaltação da maternidade e nem mesmo o (mito do) amor materno. A mulher negra não era mãe. Aos olhos do senhor de engenho, ela era fêmea, era reprodutora, cuja a “cria” poderia ser vendida como mercadoria. Como dizia mesmo aquele antigo ditado colonial? Pois bem, a “reza” era “brancas são para casar, pretas para cozinhar e mulatas para foder”. E das fodas violentas nas senzalas brasileiras nasceu (e festejou-se) a miscigenação brasileira. Ou seja, as mulheres pretas, desse solo Brasil, foram concebidas por meio de atos de não-amor, atos de pura violência. Portanto, das mamas ao útero, o corpo da mulher negra foi/é violado por completo na história do Brasil.
Mas não é sobre a condição sexual que eu quero desabafar, Alice. É sobre a nossa condição amorosa. Me parece que as pessoas não foram ensinadas a amar às mulheres pretas… Resgato o ditado colonial mencionado nessa carta. Apesar dos tempos longínquos, o pensamento de que não fomos feitas para casar perdura. Isso explica, por exemplo, porque dificilmente vemos um catálogo de noivas pretas, não é mesmo? Pensando sobre a ideia do mito do amor romântico, não somos as que casam, não temos finais felizes. Em pares românticos nas novelas brasileiras, nas produções cinematográficas, nos romances escritos, as mulheres pretas brasileiras aparecem solitárias (isso é, quando aparecem!), são anônimas, são mulheres sem histórias... quanto mais uma história de amor. Surgem sozinhas e terminam as narrativas tão sozinhas da mesma forma como surgiram.
Na história da vida real, as mulheres pretas também são sozinhas, Alice. Sozinhas, nas camadas mais baixas da população, cabe à mulher negra ser o eixo econômico em que gira a família. Essa família não obedece aos padrões patriarcais, muito menos aos padrões modernos de constituição nuclear. Ou são famílias as quais o pai se fez ausente e deixou para a mãe a criação solitária dos filhos e filhas, ou são das famílias formadas por todos aqueles (filhos, maridos, parentes) que vivem as dificuldades da extrema pobreza. Por fim, numa família preta, são poucos aqueles que cruzam a barreira da ascensão social.
Por outro lado, se essa mulher preta atinge um determinado padrão social, a solidão a acompanha nas rejeições que sofrem em suas relações afetivas. Voltando às lembranças do São João, me recordo das raras vezes em que eu era escolhida para ser o par de alguém nas quadrilhas… Na adolescência, enquanto vemos as amigas brancas terem seus primeiros “namoradinhos”, constantemente nos colocam na posição de “amiga”. Já na fase adulta, a escolha dos homens passa pela crença de que ela seja mais erótica ou mais ardente sexualmente que as demais, crenças essas relacionadas às características de seu físico (bunda grande e seios fartos), muitas vezes exuberantes… Muitas vezes, a escolha serve para o ato sexual, poucas vezes para assumir essa mulher preta enquanto companheira para a sociedade. Nesse sentido, quase sempre preterida e dificilmente preferida, a mulher preta possui um trânsito afetivo limitado. Convivendo em uma sociedade que privilegia padrões estéticos femininos como aqueles cujo ideal é de um maior grau de embranquecimento. Em uma organização social cuja a cor do amor é branca (ou embranquecida, de cor e de traços), poucas são as chances para essa mulher numa estrutura em que a atração sexual está impregnada de modelos raciais e é ela a representante da etnia mais submetida. A solidão afetiva da mulher negra fica mais visível para mulheres de pele mais escura, de cabelos crespos e gorda.
Para nos livrar do preterimento, por vezes escutamos: “você deveria optar exclusivamente por parceiros pretos…” Como se a rejeição da afetividade às pretas viesse apenas dos homens brancos. Segundo Frantz Fanon, os homens pretos, nutridos pelo desejo de serem brancos e por querer serem reconhecidos enquanto branco, relacionam-se com mulheres brancas a fim de alcançar esse reconhecimento… “sou amado como branco. Sou branco. Seu amor (o da mulher branca) abre-me o ilustre corredor que me conduz à plenitude (branca) (FANON, 2008). O amor preto é um ato político, mas o que fazer quando as preferências individuais são pautadas por uma construção social que, vale lembrar, é racista, Alice?
Quanto mais uma mulher negra se especializa profissionalmente em nossa sociedade, mais é levada a individualizar-se. Sua rede de relações também se especializa. Sua construção psíquica, forjada no embate entre sua individualidade e a pressão da discriminação racial, muitas vezes surge como impedimento à atração do outro, na medida em que este, habituado aos padrões formais de relação dual, teme a potência inesperada dessa mulher. Também ela, por sua vez, acaba por rejeitar esses outros homens, pois não aceitará uma proposta de dominação unilateral. Desse modo, ou permanece solitária ou liga-se a alternativas em que os laços de dominação podem ser afrouxados…
É ingênuo pensar que séculos do processo de escravidão que definiram toda a estrutura da sociedade, não definiriam os lugares de afeto. Diante disso, minha querida Alice, não vejo outra alternativa, senão a desmistificação do conceito de amor, transformando este em dinamizador cultural e social, buscando mais a paridade entre os sexos do que a igualdade iluminista que possui um devir utópico de um mundo sem diferenças. Ao rejeitar a fantasia da submissão amorosa, pode surgir uma mulher preta participante, que não reproduz o comportamento masculino autoritário, já que se encontra no oposto deste, podendo, assim, assumir uma postura crítica, intermediando a sua própria história e seu ethos. Assim, caberia a nós, mulheres pretas, levantar a proposta de parceria nas relações sexuais, para, desse forma, replicar nas relações sociais mais amplas...
Desculpa-me pela carta imensa. Mas precisava desabafar meus anseios enquanto mulher negra. Me mande notícias tuas!
Com amor,
Beatriz.
*O texto acima foi uma adaptação da versão do artigo “A mulher negra e o amor”, de autoria da historiadora Beatriz Nascimento publicado originalmente no jornal Maioria Falante, nº 17, fev/mar 1990. p. 3. O texto contém trechos do texto original da Beatriz. A adaptação foi produzida pela editora Maiara Juliana Gonçalves da Silva.
Maiara Juliana Gonçalves da Silva é uma mulher preta e mãe (solteira) da Sofia Valentina. Nas horas vagas, ela é intelectual, historiadora e professora de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Escola Agrícola de Jundiaí - EAJ).
Referências:
NASCIMENTO, Beatriz. A mulher negra e o amor. Jornal Maioria Falante, nº 17, fev/mar 1990. p. 3.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. 1ª ed. Salvador: EDUFBA, 2008.
RAGO, MARGARETH. Do cabaré ao lar: A utopia da cidade disciplinar e a resistência anarquista – Brasil 1890-1930. São Paulo: Paz & Terra, 2009.
RATTS, Alex (Org.). Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa oficial/Instituto Kuanza, 2006. p-102-105.