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Cartas ao espelho

Atualizado: 20 de jul. de 2020

Esta coluna tem por objetivo relatar casos em que nossas relações profissionais acadêmicas estão interconectadas com relações pessoais. Essas relações podem se dar entre colegas de graduação ou como relações de orientação, que não raras vezes, se transformam em relações afetivas. É sempre com alguma surpresa, porém, que nos damos conta do quanto essas questões que relegamos ao âmbito do pessoal interferem nas nossas identidades profissionais. E do quanto elas ocorrem com frequência. Suspeitamos que isso ocorre porque geralmente os valores atribuídos ao domínio da intimidade não são frequentemente associados à identidade profissional esperada dos historiadores e historiadoras: esses assuntos são supérfluos, rasos e dispensáveis.

Para preservar a identidade dos casos relatados, optamos por usar o formato da correspondência pessoal, a fim de manter o tom de intimidade com o qual muitas vezes nos descobrimos e relatamos essas situações entre nós. Assinando anonimamente as cartas, optamos por usar como pseudônimos os nomes de duas historiadoras brasileiras conhecidas pelos casos de misoginia perpetrados contra elas: Beatriz, mulher negra, foi morta por meter a colher em briga de marido e mulher; e Alice, cuja banca para professora catedrática faz parte da história da historiografia brasileira.

Partimos de casos que vivenciamos - direta ou indiretamente. Procuramos ao máximo preservar a identidade das pessoas envolvidas. Acreditamos na importância da divulgação dessas situações, pois queremos que mais pessoas, ao verem esses relatos, tenham ferramentas para se darem conta de seus próprios relacionamentos. Foi assim que esta Alice e Beatriz se conheceram - ao se olharem no espelho, reconheceram-se a si e à outra a partir de suas experiências em comum.

O “espelho”, presente no nome da coluna, veio do uso do espelho como tropo na historiografia. François Hartog já nos alertou para o exercício da construção do outro a partir da referência de si (O Espelho de Heródoto), mas gostaríamos de acrescentar a nuance da Bonnie Smith, quando ela lembra que esse espelho, quando no feminino, geralmente está associado à vaidade, à luxúria, à sensualidade (O Gênero e a História). Desse modo, queremos nos aproveitar de Bonnie Smith e François Hartog para colocarmo-nos a todos e todas no espelho tal como Beatriz e Alice. E esperamos que assim se dê com quem nos lê.

Nossas postagens serão mensais e garantimos o anonimato na produção dos relatos. Caso queira enviar algum relato, por favor, nos envie um email para: cartas.ao.espelho.mfm@gmail.com.


Abaixo seguem nossas primeiras cartas. Esperamos que aproveitem!

Alice e Beatriz.



 

Beatriz, olá. Tudo em ordem por aí?


Essa semana precisei entrar em contato com meu ex-companheiro para resolver umas coisas burocráticas. Não me fez bem. Me pergunto porque até hoje isso me incomoda. Será porque nunca disse a ele as coisas que hoje vejo que deveria ter dito? Que a ficha de que eu estava numa relação no mínimo torta caiu só depois da separação?Engraçado que eu, que sempre me achei a feminista consciente, não via coisas que hoje eu vejo. E acho que por isso ainda não me perdôo. De ter dado cartaz a um cara que não merecia... e enquanto eu fazia isso, só alimentava o ego e a vaidade da criatura. Ele debochava do tipo de música que eu ouvia, do tipo de roupa que eu comprava, da relação de capricho que eu tinha com meu cabelo. Numa conversa qualquer, o ouvi exaltar o fato de que a mãe tinha cuidado dos filhos absolutamente sozinha em casa. Retruquei que ele não conhecia em nada as redes que mulheres estabelecem nas tarefas do lar, no cuidado de crianças e o quanto isso era crucial para nossa sobrevivência, e que a mãe dele não devia era de ter passado por nada daquilo. Glorificar uma situação em que a mãe dele por certo sofreu como uma condenada e tomar isso como parâmetro para outras só indicava o quanto a percepção dele do papel de uma mulher numa relação era atravessada por uma falso endeusamento das mulheres, que lhes pede abnegação e sacrifício: a mãe era uma rainha porque sofreu por eles. Exatamente nos moldes da fala da Laura Dern em Histórias de um Casamento, sabe, quando ela diz: “Porque a base de nossa conversa judaico-cristã é Maria, a mãe de Jesus, que é perfeita. Ela é uma virgem que dá à luz, apoia incondicionalmente o filho e segura seu cadáver quando ele morre. O pai não aparece. Nem apareceu para a trepada. Deus está no céu. Deus é o pai e Deus não apareceu. Você tem que ser perfeita, mas Charlie pode ser um puto desastre. Você sempre será colocada no nível mais alto.” Ele podia ser declaradamente de esquerda, da academia, mas isso não o isentava de construir suas relações pessoais pelo machismo nosso de cada dia.

Muitos casais se formaram nas salas de aula universitárias, em grupos de pesquisa, durante eventos, etc. Relacionar-se com alguém do mesmo ambiente onde você circula profissionalmente faz com que muitas experiências sejam compartilhadas e muitas carreiras construídas juntas. Faz até com que sejamos vistas mais como parte de um casal e menos pelas nossas próprias trajetórias (vide as tantas referências que se fazem em qualquer meio: “Fulana, esposa de beltrano.”), consequência de uma sociedade que define suas mulheres pelo seu status marital (Senhora, Senhorita). Isto para não falarmos daquelas que mesmo sem formação profissional, propiciamos o trabalho de nossos companheiros: em quantas aulas sobre Raízes do Brasil, lembramos de mencionar o trabalho de Maria Amélia Buarque de Holanda em organizar, compilar, datilografar, enfim, dividir o trabalho com Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo?

Foram anos juntos, desde a graduação até o doutorado. Uma série de experiências compartilhadas: eventos juntos, angústias de seleções de mestrado, doutorado compartilhadas, ansiedades por aprovações de artigo... Uma identidade acadêmica que se fundia.... ao menos da minha parte. Quando terminamos, me perguntava: e agora, como vai ser quando for pra Congresso tal? E no entanto, uma colega do Paraná me disse que a gente encontra nosso caminho. E que ele é ainda melhor porque ele é só nosso (spoiler: foi exatamente o que aconteceu).

Hoje eu me dou conta de que do lado de lá, bem... as prioridades eram outras. Ele colocava claramente a carreira dele acima da relação: me chamou de invejosa, me acusou de não o apoiar do doutorado (que eu deveria aturar as grosserias dele e que eu não preparava as refeições pra ele como gesto de carinho, veja só). Apesar de ser comum, é até uma surpresa quando criamos a coragem de compartilhar com alguma colega nossas experiências e constatar que outras delas também passaram pelas mesmas coisas que nós. Perceber o quanto a vaidade acadêmica também é uma vaidade masculina. E algo com que precisamos acertar contas: por que a gente se prestou a esse tipo de coisa?

Admitir que eu alimentei o ego de uma criatura dessas fere quem eu sou e acho que é isso que ainda hoje, me faz ter raiva. E ainda mais desgosto por não ter insistido na época e na cara dele de que meu companheiro acadêmico, super engajado, era, veja só, machista.

Beijos com saudades,

Alice.


 

Olá, querida Alice!


Que bom poder escrever para ti. A gente passa tanto tempo imersas em nossos trabalhos solitários de historiadoras, que escrever para uma amiga - ainda que da mesma área - já me traz um suspiro em meio ao ritmo acelerado do universo acadêmico.Lendo as tuas primeiras palavras, acho um tanto engraçado como “problemas individuais” na verdade são coletivos, não é mesmo?

Como você sabe, ainda estou cansada e as crianças já cresceram: a Ana está com 4 anos e o João completa 10 anos na semana que vem. Estou pensando seriamente que chegou a hora de fazer meu pós doutorado na França.. Há dias, venho pensando no projeto e preciso sentar para escrevê-lo em tempo para concorrer ao edital. Você sabe, né? Com dois filhos, acabei atrasando a trajetória acadêmica. Já o meu companheiro, passou um ano fora. Lembra que ele estava na Espanha? Pois é, o Felipe retornou há pouco tempo. Como ele já concluiu a sua formação pós doc, acho que finalmente chegou a minha vez. O problema é que venho encontrando muita dificuldade em escrever o projeto pois tenho que conciliar o processo de escrita com o cuidado com as crianças, manter a casa limpa e organizada, bem como preparar as refeições para quatro pessoas. Certo dia, quando cheguei a cogitar que finalmente sentaria a bunda na cadeira para botar o projeto no papel, meu companheiro me pediu para cuidar das crianças no turno da manhã, pois ele precisava submeter a última prestação de contas da pesquisa, mesmo faltando uma semana para o término do prazo para a submissão.

O engraçado, Alice, é que os prazos “determinados” pelos nossos colegas historiadores são sempre urgentes e prioritários, enquanto os nossos sempre podem esperar. Eis aqui o ponto em comum. Para que eles avancem, me parece, você, eu e outras sempre podemos esperar. As nossas realizações profissionais devem ser pacientes... Lembrando desse relato, eu questiono: qual a diferença dos obstáculos existentes para a concretização da nossa carreira para a carreira dos companheiros historiadores? Será que se não houvesse os filhos, a casa, as quatro refeições, a minha produtividade seria maior? A gente ouve muito que, ao optar pela trajetória do magistério superior, o verdadeiro casamento que você faz é com a universidade e esse deve ser um casamento sem filhos físicos - porque filhos são mais um obstáculo para toda mulher que almeja seguir uma carreira acadêmica. Será que se tivesse uma divisão de tarefas domésticas e de cuidados com as crianças, isso possibilitaria um maior equilíbrio na carga das demandas familiares e igualaria os rendimentos de produção científica? É como você bem falou. Companheiros, historiadores, cientistas super engajados, mas, ainda assim, um machismo paira no ar... Bem, eu espero que consiga desenvolver o meu projeto ainda nesta semana.

E quanto a você, desejo lê-la de novo!


Com amor e saudades,

Beatriz.


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