A experiência do confinamento, do encerramento,
da imobilidade faz parte da história das mulheres
Leïla Slimani

Em seu diário do confinamento, a romancista se questiona sobre o papel tradicional atribuído às mulheres
“À primeira vista, as mulheres parecem confinadas. A sedentariedade é uma
virtude feminina, um dever
das mulheres ligadas à terra, à família, ao lar. Para Kant, a mulher é a casa. O direito doméstico assegura o triunfo da casa; ele enraíza e disciplina a mulher, abolindo todo desejo de fuga”. Em sua História das Mulheres (Editora Contexto, 2007)[1], Michelle Perrot fala da relação das mulheres com a mobilidade. A mulher, segundo ela, é um ser sedentário cuja existência é marcada pela espera. Penélope espera Ulisses como as jovens meninas virgens esperam um homem que venha lhes libertar e lhes permitir cumprir o seu destino.
As mulheres estão “no lar”, elas devem estar “lá” para suas crianças. Elas são um ponto de ancoragem, uma referência imóvel, enquanto o homem é sempre atraído para fora. Os assuntos do mundo o chamam. O homem faz a política, ele faz a guerra, ele faz o mundo girar.
O espaço público foi, por muito tempo, e ele ainda o é em muitos países, profundamente hostil à presença das mulheres. Porque se elas estão mantidas entre quatro paredes é também porque se desconfia delas. No interior, a mulher vive sob vigilância. A quantas meninas nós dizemos: “É a escola e a casa”? Nada é tão temível quanto a garota que sai, a garota das ruas, que erra sem objetivo e que coloca em perigo a sua virtude.
Entre essas quatro paredes, a vida das mulheres é invisível, uma eterna repetição de tarefas cotidianas que nós nem vemos mais. Nutrir, cuidar, lavar roupas, ninar uma criança. Trancada em um espaço, a mulher também está em silêncio, pois sua palavra não está fadada a ser ouvida. Muitas vezes pensei que é por isso que desconfiamos tanto das mulheres que leem. A leitura é uma viagem imóvel, uma evasão temporária para fora de nossa prisão, uma errância onde nada pode nos deter.
No Marrocos, em alguns terraços de cafés, nós só vemos homens. Um dia, eu me lembro de ter sentado em um deles, de ter acendido um cigarro e o patrão, muito gentilmente, me pediu para me instalar do lado de dentro. “Isso vai me criar problemas”, ele me disse. Agora que o Marrocos está confinado, digo a mim mesma que esses homens estão em casa e me pergunto se, medindo o que está sendo arrancado deles – a possibilidade de andar, de se sentar no café, de estabelecer uma conversa com um desconhecido -, eles pensam um pouco em suas irmãs, em suas mulheres, em todas aquelas que integraram a ideia de que nós estávamos indo da casa para o trabalho, do trabalho para o mercado, do mercado para casa.
Ulysses no feminino
Em muitos países do mundo, mesmo quando elas não são explicitamente impedidas de sair, tudo contribui para empurrar as mulheres para dentro. Um trajeto de ônibus? Um inferno. Sentar-se sozinha em um banco, no meio de um parque? Uma loucura. A experiência do confinamento, do encerramento, da imobilidade faz parte da história das mulheres. A liberdade de movimento foi e continua a ser uma luta para milhões de nós.
Em seu livro Sonhos de transgressão: minha vida de menina num harém (Companhia das Letras, 1996)[2] a socióloga Fatima Mernissi conta sua infância em um harém de Fez nos anos 1940. “Errar livremente nas ruas era o sonho de todas as mulheres”, escreve aquela que passou sua infância a espiar a rua de cima do terraço ou através das persianas.
É ali, ela diz, nesse confinamento, que ela sonha em ser escritora.
“Vou me tornar mágica. Eu cortarei as palavras para compartilhar os sonhos com as outras pessoas e tornar as fronteiras inúteis”.
Uma outra mulher vem à mente e é a feminista americana Gloria Steinem. Ela escolheu a vida de eterna nômade, de viajante sem fim, ela é uma espécie de Ulysses no feminino, mas uma Ulysses que não fantasiaria Ítaca, que não teria para onde voltar, somente lugares a descobrir.
Para ela, nascida em 1934, o lar tradicional não era nada mais que uma armadilha, e a imagem da perfeita dona de casa americana era repulsiva.
A ideia de uma casa bem arrumada, com cheiro de limpeza e de bolo saindo do forno só lhe inspirava desconfiança. É preciso ler sua autobiografia, Minha vida na estrada (Bertrand Brasil, 2017)[3] onde ela mostra como a viagem é política para uma mulher.
A estrada incarna a liberdade, o desejo de mudança, a sede de encontrar o Outro. Ela é a recusa dos conservadorismos e das alienações.
Quando minha avó, alsaciana, se mudou para o Marrocos no final dos anos 1940, ela descobriu esta ausência da diversidade no espaço público. Sua própria sogra vivia confinada em uma casa tradicional e sua cunhada saía às escondidas. Meu avô adorava ir ao café - entre homens, é claro - e ele nunca imaginou que sua mulher pudesse acompanhá-lo. No entanto, quando ela o via pronto para sair, minha avó tirava o avental, beliscava as bochechas e corria atrás do marido. "Eu vou também", ela dizia. E nada e ninguém poderia dissuadi-la.
Leïla Slimani é escritora, nasceu em Rabat, no Marrocos. Acaba de lançar Le pays des autres (Gallimard, 368 páginas, 20 euros). Ela recebeu o prêmio Goncourt 2016 por seu romance Chanson Douce (Gallimard, 2016), publicado em português sob o título Canção de Ninar e editado em mais de 30 países .
Texto originalmente publicado no periódico Le Monde em 29/03/2020.
Tradução de Thaís Tanure.
Foto: Lionel Bonaventura, AFP.
[1] Em francês Mon histoire des femmes, Seuil, 2006.
[2] No texto original, cita-se a edição francesa Rêve de femmes (Albin Michel, 1996).
[3] Em francês Ma vie sur la route (Harper Collins, 2019). A publicação original em língua inglesa é de 2015 My life on the road (Penguim Random House).