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CPF
Por Ana Beatriz Nogueira*
“And I was part of that pact of silence, in a way; it was a condition of the treaty that gave me my equality, that I would not invoke the primitivism of my mother, her innate superiority, that voodoo in the face of which the mechanism of equal rights breaks down”
(Rachel Cusk, Aftermath)
Quando meu avô morreu, descobrimos que minha avó não tinha CPF.
CPF, este documento necessário a qualquer transação elementar. Sem o qual não se pode comprar um eletrodoméstico. Abrir uma conta no banco. Minha avó não o tinha. Porque tudo, tudo, era meu avô quem fazia. Todas as providências práticas da vida civil.
Vovó, recém viúva, não sabia preencher um cheque – nunca havia assinado um.
A ela era reservado o reino - igualmente prático, mas de uma maneira distinta - do doméstico. Onde sua assinatura estava nos temperos, nos carinhos. Não nos contratos.
Não é que eu recorde o momento em que algum trâmite exigiu o CPF inexistente de minha avó. Eu era uma criança quando meu avô morreu. Lembro de entreouvir minha mãe comentar sobre a ausência do documento.
Mamãe, com sua voz firme, sempre atrelada às necessidades da vida. Necessidades como, finalmente, providenciar um CPF para minha avó. O método favorito de minha mãe para navegar as tempestades emocionais é se ocupar das coisas práticas. A pragmática capitã autoproclamada de qualquer navio a adernar no oceano familiar.
Talvez, mais que um mecanismo de defesa, se trate também de uma maneira inconsciente de se distanciar do modelo de sua mãe, uma mulher que não tinha sequer um CPF.

(Referência da imagem: https://www.sympla.com.br/resgate-e-cura-da-ancestralidade---bairro-tatuape-sp-florescer-bento__408429#info)
Minha memória do CPF ausente, símbolo eloquente do papel social reservado à minha avó, não é de percebê-la como dependente - eu, criança, não era capaz de me sentir chocada por uma mulher adulta não ter um CPF. Tenho a memória do estupor de minha mãe ao relatar o fato. E de ter percebido, pelo tom de voz de mamãe, que ser uma mulher sem CPF era um estado indesejável.
Guardo uma memória auditiva, vagamente misturada com a lembrança visual da mesa de jantar do apartamento de minha avó. O marrom da madeira. O frio dos braços de metal da cadeira. Um sentimento opressivo meio difuso - como se o ar estivesse abafado dentro daquela casa em luto. E as conversas dos adultos sobre a falta do CPF.
Tenho a memória de outros momentos em que minha mãe repetiu a história do CPF. Dessa feita, já em tom educativo, de forma a incutir em mim e em minha irmã a necessidade de virmos a ser mulheres que não dependeríamos da boa vontade de nossos maridos para retirar um CPF.
(Contraditoriamente, nessas mesmas conversas em que se insistia na independência simbolizada pelo CPF, a presença futura de um marido aparecia tratada como uma certeza, não como uma possibilidade.)
Outras vezes, a história era recontada em uma chave diferente, onde ficava claro o anseio da narradora por ressignificar a narrativa. Era patente o esforço de mamãe, mulher independente, em reconciliar a figura do homem que achava que a esposa não precisava ter CPF com o pai amoroso e dedicado que minha mãe amara. “Papai morreu tão jovem por causa do muito que trabalhava”, minha mãe dizia; “cansei de vê-lo sair do quarto de manhã cedo, na ponta dos pés, para não acordar sua avó.” E completava: “sua vó teve uma vida boa, sem preocupações. Foi sempre poupada.”
O que é verdade.
Mas igualmente é verdade que um pedestal também é um espaço confinado, como diz uma famosa feminista. E minha mãe sabe disso. Tanto que forjou outro destino para si.
Mamãe me ensinou muitas coisas. Algumas involuntariamente. Uma delas, que o orgulho de ter um CPF se mistura a uma nostalgia por ser cuidada. Outra, que muito desculpamos às figuras masculinas.
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Minha avó sempre foi uma mulher inteligente. Lia muito, gostava de cinema. Era “professora formada” – o máximo de ambição intelectual socialmente permitida às mulheres de sua geração. Aos 95 anos, seu vocabulário de leitora voraz faz com que siga imbatível no jogo de palavras cruzadas. Nenhuma das netas é páreo para ela.
Dizem ter sido também uma mulher bonita. Nas fotos antigas, vejo um sorriso meigo e um olhar confiante, em um rosto que, para os estreitos padrões estéticos de hoje, seria considerado um tanto bochechudo. A pele alvíssima empresta a estas fotografias uma dimensão quase tátil.
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Nossa memória é formada pelo que se viu e pelo que se viveu. Mas também pela mitologia familiar. Pelas histórias que nos foram contadas e que, de alguma forma, se incorporam ao tecido de nossa vida, à narrativa de nossa família, de nossos ancestrais.
Outra das histórias que lembro sobre minha avó também tem minha mãe como narradora.
Mamãe contava que vovó atravessou uma menopausa terrível, com mudanças de humor repentinas e abrumadoras, uma ferocidade bastante assustadora para toda a família, acostumada ao temperamento cordato de minha avó. Mamãe creditava esse furacão hormonal, com certo orgulho, ao fato de vovó ter sido a primeira usuária de anticoncepcionais de que tinha notícia. Meu avô trabalhava com importações e exportações e, tão logo surgiu a pílula, antes de tal medicamento estar disponível no Brasil, minha avó o convenceu a trazê-la para ela do exterior. O desejo, inarticulado, de ditar as regras do seu corpo, mesmo sem ter sequer um CPF.
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Uma vez, não sei se por ocasião de alguma mudança ou de simples arrumação da casa, tive acesso a uma caixa de recordações de minha avó. Fotos antigas: dela, de familiares, de meus tios, do casal. Fotos amareladas, com dedicatórias escritas no verso em tinta preta. Cartões postais, lembranças de um tempo em que toda viagem era um acontecimento. Cartas. Pequenos objetos. E, no meio desses pequenos objetos, um caderninho de capa preta.
Neste caderninho, com a caligrafia floreada das avós, anotações sobre cinema. Nomes de filmes, ano, diretor, atores principais, e algumas impressões depois de cada título.
- Vó, o que é esse caderninho? É sua letra, não é?
- Ah, bobagem, Aninha. São umas coisinhas que eu anotava sobre os filmes que via. Eu e seu avô íamos ao cinema toda semana, sabia?
A maioria dos filmes do caderno da Vovó são hoje considerados clássicos das décadas de 40 e 50. Eram bastante interessantes os comentários, apesar de claramente amadores. Bons resumos das tramas, textos bem escritos, comentários divertidos sobre atores e atrizes. Com um mínimo de treinamento e edição, seria fácil ter convertido este material em crítica de cinema para alguma revista da época.
Nem sei se esse caderninho ainda existe. O desinteresse típico dos jovens para com tudo que diz respeito à memória fez com que não o tenha guardado.
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Hoje eu me pergunto quem era essa mulher. A mulher de verdade, escondida por trás da minha avó que fazia milanesas inesquecíveis. Quem era essa mulher que não se rebelava por pelo direito a ter um CPF, mas que sabia fazer crítica de cinema? Essa mulher que intuitivamente entendia que ter dez filhos era uma opressão a ser evitada. Essa mulher de quem era cobrada uma cordialidade implacável, que resistisse impávida às intempéries da idade, às flutuações hormonais e aos sonhos sufocados, a fim de não alarmar a família.
Quem essa mulher poderia ter sido?
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Um dia cheguei na casa de meus avós e encontrei vovó em meio a um pranto desconsolado. Meus avós, então, moravam em uma casa linda, com um jardim na frente, uma escadinha pela qual se entrava na sala espaçosa, de cores claras e pé-direito altíssimo – uma arquitetura utilitária, pensada para minimizar o calor do Nordeste em tempos pré-refrigeração, mas de grande efeito estético.
Vovó estava sentada na varanda e chorava como se tivesse perdido um ente querido. E, de fato, perdera: a TV acabara de exibir uma reportagem em homenagem ao aniversário de morte de Tyrone Powell, o ator.
Foi um choque ver vovó chorando. Lembro de perguntar quem era o tal “Tairone” que vovó pranteava.
Que mundos imaginários minha avó deve ter habitado, em paralelo à sua vida real – à vida em que não lhe era conferido o direito de ter um CPF? Será que nesse mundo imaginário Tyrone seria um marido alternativo – ou mesmo um amante, será que minha avó se permitia sonhar com um amante? Que fantasias essa mulher habitou, que vida mental desenvolveu para se compensar por esse destino estreito de mulher, por esse roteiro repetido e já traçado de antemão?
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A avó que eu conheci era uma mulher doce, sempre alegre, que me levava pela mão para comprar revistas em quadrinhos na banca da esquina, que costurava vestidos para minhas bonecas, que cozinhava refeições cujos sabores ainda posso evocar. Parecia feliz, inofensiva e sem maiores complexidades. Que profundezas ela escondia? Quem era a mulher cujos paliativos à sua vida de pequenas alegrias domésticas pareciam reais a ponto de fazê-la chorar?
Será que esta estranha, esta pioneira da contracepção, que conheci brevemente no dia do aniversário de morte de Tyrone e cujas anotações encontrei, ainda existe dentro da senhora de 95 anos, sempre bem penteada e bem vestida, ainda lúcida e bem informada, campeã de scrabble?
Será que é justo querer saber dessa mulher alternativa? Do que minha avó poderia ter sido se mais lhe houvesse sido permitido, se o ambiente social fosse menos sufocante? Será um exercício de curiosidade? De resgate? De revalorização de um potencial suprimido, sufocado?
Ou será uma involuntária crueldade?
Será meu interesse na mulher alternativa uma recusa dogmática, em que eu, empunhando a bandeira do meu feminismo, reluto em reconhecer o valor de cada história? Uma recusa em reconhecer a bravura necessária para encontrar a felicidade possível, mesmo em circunstâncias injustas, reduzidas?
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Não há respostas fáceis.
*Ana Nogueira é mulher, feminista, nordestina, neta da Dona Anália e autora de “Cartas de Beirute – Reflexões de uma mãe e feminista sobre autismo, identidade e os desafios da inclusão”
O meu amor é proibido!
Langela Monteiro*
O meu amor é proibido
Eu não posso gritar a minha líbido
Tem que ser escondido!
O meu amor é proibido
Eu não posso dizer que é ela
O amor da minha vida
O meu amor é proibido
Então eu sigo o padrão
Vivendo um eterno orgasmo fingido
Langela Monteiro - Parnaíba (PI)
* Langela Monteiro é mulher piauiense, apaixonada por livros, feminista e aspirante a poetisa. Acredito que a educação muda o mundo, por isso acadêmica de licenciatura em História pela Universidade Estadual do Piauí.
Para dizer
Cláudia Nascimento*

Para lançar conotações
Não desejo só estar em salas quase abertas
Com luzes mornas
Escondida nos cantinhos de algum lugar
Para simbolizar
Prefiro ouvir musica acesa
Ou a plenitude do silêncio
Envolvendo-me os castanhos olhos
Aguçando-me os sonhos e memórias
Na hora pensada, mover-me como borboletas
Por entre caminhos desenhados
Com minhas próprias cansadas mãos
Trilho o que ainda me aquece
Afinando-me com perfumadas folhas
Só quero dizer sem amarras
Não busco celebrações dos meus feitos
Nem perfumo ninguém para trocar pelos meus versos
Meus poemas não nascerão enclausurados
Meus ventos são cantados no Tempo
Recitados em qualquer lua
Sentidos por quem desejá-los
Se amansá-los ou guardá-los em potes
Estrelamente retornarão ao sagrado
Ao libertário repouso
Ao imprevisível mar
Ao Si-poético
Cláudia Nascimento
10-06-2020
* Cláudia Nascimento é formada em Letras- UERJ, Especialização em Literatura Brasileira -UFF, Especialização UFF, Leitura e Produção de Textos- UFF. Graduanda em Produção Cultural - UFF. Professora da Rede Estadual de Educação do Rio de Janeiro.Professora e Escritora. Uma das vencedoras do Prêmio Paulo Freire de Educação(ALERJ) em 2019.