Respeita Nossa História

Por: Flavia Veras* “Bárbara flor do sertão, guerreira do não e do sim. Bárbara mãe de Tristão, avó de Alencar do Guarani. Bárbara olha esse mar, o Dragão desse mar é um Davi. Feito você a lutar pelo dom de lutar pelo porvir...” (Trecho de Glauco Luz. “Flor do sertão”) Bárbara Pereira de Alencar, ou “Dona Bárbara do Crato” como era chamada pelos seus contemporâneos, nasceu em 11 de fevereiro de 1760 na Cidade de Exu, na Capitania de Pernambuco, em uma família abastada. A casa onde viveu na infância, na Fazenda Caiçara, é hoje um pequeno centro cultural. Ela se casou contra a vontade dos pais aos 21 anos com um comerciante português, quando se mudou para a Cidade do Crato, atualmente sertão do Ceará, mas na época ainda pertencente à província de Pernambuco. Foi mãe dos também rebeldes José Martiniano de Alencar e Tristão de Alencar, avó do famoso escritor José Alencar e tataravó de Raquel de Queiroz. Um livro de pouca circulação comercial, escrito por Juarês Ayres de Alencar - “Dona Bárbara do Crato” - a partir das memórias de família ajuda a manter vivos alguns relatos dessa personagem, posto que muitas fontes históricas relativas a ela foram destruídas. Apesar dos esforços contemporâneos, sua biografia ainda não é muito conhecida, mesmo no Ceará. Ela foi uma mulher notável em sua época: defensora da liberdade, da república e da causa abolicionista [1]. Era reconhecida como “Inimiga do Rei”. Bárbara foi inspirada por ideias iluministas e lutou contra a ordem política colonial e imperial, liderou resistências que contestavam o poder centralizado no Rio de Janeiro, o autoritarismo da constituição outorgada em 1824 e a exploração financeira das províncias. Ela tinha contatos com pessoas influentes e religiosos, muitos deles ligados à maçonaria na sua terra natal. Conseguiu enviar dois de seus cinco filhos para estudar no Seminário de Olinda, e desempenhou um papel fundamental para conectar as lutas entre as regiões de Pernambuco e Ceará. Mesmo antes de se tornar viúva, Bárbara cuidava dos negócios da família, no Sítio Pau Seco, à revelia de seu esposo, 30 anos mais velho. Seus negócios encontravam dificuldades frente a um contexto de dificuldades econômicas no Ceará, visto que do Rio de Janeiro chegavam ordens para cobrança de pesados tributos nas províncias e que no sertão a seca dificultava a vida de todos. Respeitada e atuante como uma das mais importantes matriarcas da região, figurava como uma mulher forte do sertão. Por conta de suas ligações com Pernambuco e em acordo com as ideias de seu filho, José Martiniano de Alencar, aos 57 anos teve participação ativa na Revolução de 1817, que começara justamente em Pernambuco. Dessa forma, ela é uma personagem importante para pensarmos as tensões que marcaram o processo político da independência do Brasil, tal como os projetos possíveis de emancipação, em contraste com o monárquico vitorioso. Sobre a incorporação do Crato na Revolução de 1817 descreve-se: “A Igreja Matriz do Crato, no interior do Ceará, estava lotada de fiéis na missa dominical do dia 3 de maio de 1817, festa de Santa Cruz. A matriarca de uma das mais importantes famílias de todo o Nordeste, Bárbara de Alencar, acompanha o sermão ao lado de um público formado, na sua maioria, por pequenos comerciantes semianalfabetos e produtores rurais. Ao fim da cerimônia, um homem vestido de batina sobe ao altar e assume o púlpito de surpresa. Não era um padre. José Martiniano de Alencar, filho caçula de Bárbara, discursa sobre a sofrida realidade do Brasil colonial. Os espectadores aplaudem empolgados e ele manda hastear sua bandeira da independência [2].” Esse evento é corroborado e analisado por Raquel de Queiroz e Heloísa Buarque de Hollanda em “matriarcas do Ceará”. As autoras defendem que “ela (Bárbara) também assumiu o comando do movimento (de 1817), deixando a liderança apenas para que seu filho José Martiniano de Alencar subisse no púlpito em frente à igreja e proclamasse a república na região, a República do Jasmim, nome de uma propriedade sua. Bárbara se viu impossibilitada de fazer a proclamação ela mesma. Não era atitude própria de uma senhora”. A luta de 1817 foi separatista, ambicionava-se fundar uma república, o que ocorreu na cidade de Crato por apenas seis dias. Embora seu filho tenha tomado a frente do movimento, o reconhecimento público de Bárbara Alencar faz com que muitos digam que ela foi a primeira presidenta que o Brasil teve. Se existe controvérsia sobre sua curta presidência, o título de primeira presa política não é contestado. Vale lembrar que sua prisão por causa política, ou seja, a rebelião contra a ordem monárquica e portuguesa não se sobrepõe à luta de muitas mulheres que se levantaram contra a escravidão e foram penalizadas por isso. A repressão à República do Crato foi avassaladora. Bárbara e seus filhos foram presos e levados primeiro para Fortaleza, depois para Recife e Salvador. Existem muitas controvérsias e histórias fantasiosas acerca dos três anos de prisão de Bárbara. Há relatos de que ela teria ficado em uma prisão subterrânea em Fortaleza - o que é contestado por historiadores - no Forte Nossa Senhora de Assunção, que é um ponto turístico da Capital cearense não apenas pela história de nossa biografada, mas também por ser um dos marcos fundadores da cidade. Existem também relatos de que Bárbara, apesar da idade avançada para a época, teria sido torturada, além de pendurada no lombo de um burro com os braços acorrentados pelos dias que duraram a viagem do Crato até Fortaleza. Outro boato corrente é que ela teria escrito um bilhete com seu próprio sangue pedindo ajuda para as pessoas influentes que conhecia em Pernambuco. No entanto, não existe nenhuma fonte material desses relatos. Todos os escritos de Bárbara foram destruídos ainda em 1817, o que favoreceu a defesa da família Alencar, livrando-os da pena capital. Após mais de três anos de prisão, Bárbara foi anistiada. Ao retornar, além da fama de traidora, havia perdido todos os seus bens. Os contratempos e a idade não impediram que Bárbara participasse de outra revolta, agora com o Brasil já independente e contra Dom Pedro I e seu autoritarismo. Ela tomou parte da Confederação do Equador que explodiu em 1824 em Pernambuco, e que rapidamente se alastrou por outras províncias do Nordeste, entre elas o Ceará. Os rebeldes novamente foram duramente reprimidos e nessa ocasião Bárbara perdeu dois de seus filhos, mortos na guerra. Após a abdicação de D. Pedro I, em 1831, os restauracionistas (grupo que apoiava a monarquia) empreenderam uma forte reação aos revoltosos, que fez com que Bárbara tivesse que fugir. Dessa vez, ela não aguentou a viagem e morreu em 1833 no Piauí. Atualmente, muitos são os esforços de grupos intelectuais nordestinos e feministas para lembrar da história, da vida e das lutas de Bárbara de Alencar. Centros culturais e medalhas com seu nome foram criadas e uma estátua de Bárbara foi erguida na Praça da Medianeira. Em 2014, seu nome foi inscrito no Livro de Heróis da Pátria e depositado no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves em Brasília. Em 1980, Caetano Ximenes de Aragão publicou um livro-poema “Romanceiro de Bárbara”, que recentemente foi reeditado pela secretaria de cultura do Ceará [3]. Esse verbete será concluído com um poema escrito em 1919 por José Carvalho em homenagem à Bárbara de Alencar e que também fecha o livro anteriormente referido. O poema é aqui reproduzido com a grafia original: D. BARBARA Eu, sim, de tudo sei! Pela primeira vez tal cousa falei bem constrangida, embora, a tão humilde amiga. Posso amanhã morrer, mas quero que alguém diga - mesmo que seja assim do povo um mulher – que da calumnia vil, sou victima! E siquer nem dela me poupou a inveja e a negra intriga de um inimigo tal, a quem seu ódio abriga a nada respeitar, nem mesmo a honra alheia! Ser liberal é toda minha macha feia e pela qual respondo, assim calumniada, porque succumbirei na fôrca ou fuzilada! Em paga desse amor á terra que nasci recebo um premio tal! Dir-se-á que padeci mas não dirão jamais que a Patria reneguei! Arrancaram-me tudo: a família que amei, a honra de mulher; escravos que eu criei como filhos também; - a fazenda ou riqueza – mas, do meu coração, não podem, com certeza arrancar este amor ao meu Brasil querido! Morrerei satisfeita! Um dia esse Partido ha de cantar victoria; e meu Paiz, emfim ha de ser livre, um dia! Pará – Janeiro – 1919 José Carvalho Referências e dicas Fundação Demócrito Rocha. Os Cearenses 2 – Bárbara de Alencarhttps://youtu.be/4ZaDIMYdO4Y ALENCAR, Juarês Ayres de. Dona Bárbara do Crato, a heroína cearense. Fortaleza, Ceará : Universidade Federal do Ceará, 1972. ARAÚJO, Ariadne. Bárbara de Alencar. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 2017 GASPAR, Roberto. Bárbara de Alencar: a guerreira do Brasil. Universidade de Indiana, 2001. HOLLANDA, Heloísa Buarque & QUEIROZ, Rachel. Matriarcas do Ceará. Rio de Janeiro: Papéis Avulsos, UFRJ, n. 24, 1990. LUNA, Claudia. Bárbara de Alencar e Manuela Sáenz: duas mulheres nas independências latino-americanas. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura, realizado na Universidade de Brasília. Disponível em: https://www.cemhal.org/revista2.pdf MIRANDA, Ana. Dona Bárbara do Crato - Dona Bárbara foi a primeira presa política na história brasileira” Disponível em https://www20.opovo.com.br/app/colunas/anamiranda/2013/02/23/noticiasanamiranda,3010427/dona-barbara-do-crato.shtml NUNES, Dimalice. “Conheça Bárbara Pereira de Alencar, a primeira revolucionária do Brasil”. https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/barbara-pereira-de-alencar-primeira-revolucionaria-do-brasil.phtml PARENTE, Claúdia. Bárbara de Alencar uma guerreira da “legião de sonhadores”. Disponível em: https://revistacontinente.com.br/edicoes/159/barbara-de-alencar--uma-guerreira-da-rlegiao-de-sonhadoresr Notas [1] Segundo o livro de ALENCAR, Juarês Ayres de. Dona Bárbara do Crato, a heroína cearense. Fortaleza, Ceará : Universidade Federal do Ceará, 1972. [2] NUNES, Dimalice. “Conheça Bárbara Pereira de Alencar, a primeira revolucionária do Brasil”. https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/barbara-pereira-de-alencar-primeira-revolucionaria-do-brasil.phtml [3] Disponível em: http://portal.ceara.pro.br/index.php?option=com_content&view=article&id=33862:1920-heroina-nacional-barbara-de-alencar&catid=472&Itemid=101 * Flavia Veras é editora da Revista MFM, membro do LEHMT-UFRJ e professora no ensino básico.

por Maiara Juliana Gonçalves da Silva* Palmyra Guimarães Wanderley destacou-se no meio intelectual potiguar por meio de suas poesias e de sua atuação na imprensa. A escritora, desde cedo, parecia ter trilhado os caminhos da família “Wanderley”, uma família de intelectuais consagrados no estado do Rio Grande do Norte. A vida pública da jovem intelectual foi trilhada pelo cenário literário norte-rio-grandense com a publicação de dois livros de poesias Esmeraldas (1918) e Roseira Brava (1929). Antes mesmo da publicação dos seus livros, Palmyra Wanderley enveredou pelo campo jornalístico, realizando o anseio de uma geração de mulheres dispostas a contribuir intelectualmente com a fundação da primeira revista feminina impressa do estado, a revista Via-Láctea, de onde disseminou escritos acerca da educação e da emancipação da mulher. Em fins do século XIX e nas quatro primeiras décadas do século XX, Natal vivenciou um período de transformações materiais e culturais que delineavam um novo modelo de organização do espaço urbano. Os indícios de desenvolvimento urbano podem ser percebidos no início do século XX, por meio dos projetos de urbanização e de higienização elaborados na capital norte-rio-grandense. Nas primeiras décadas do século XX, a cidade ganhou novos ambientes. Vieram os clubes, os cafés, os cinemas, a iluminação elétrica e o transporte por bondes elétricos que conferiram uma nova feição à cidade do Natal. Segundo o historiador Raimundo Arrais, mesmo que classificada como uma capital sediada em uma cidade pequena, Natal não se mostrou indiferente às ideias que circulavam no mundo (ARRAIS, 2008, p. 27). A capital norte-rio-grandense foi aos poucos assimilando o espírito de vida moderna, do novo, de progresso referentes ao discurso que contaminava o Brasil durante o regime republicano. O desejo de progresso e de civilização não passou indiferente em Natal, uma vez que tal discurso, influenciado pelas correntes científicas e filosóficas de fins do século XIX, foi capaz de estimular as transformações sociais e físicas empreendidas na urbe. Durante o período da Primeira República, identificamos um grupo de intelectuais atuando na capital norte-rio-grandense. Esses indivíduos reservavam parte do seu tempo à produção literária. Homens e mulheres que produziram crônicas, poesia, romances, contos, peças de teatro, estudos científicos, críticas, ensaios monográficos, entre outros gêneros. Esses indivíduos, que se autonomeavam de literatos, delinearam o universo das letras potiguares. Identificamos entre o conjunto de intelectuais potiguares, o nome de algumas mulheres que participavam da construção do âmbito literário da capital, entre elas: Palmyra Wanderley, Carolina Wanderley, Sinhazinha Wanderley, Auta de Souza, Isabel Gondim, Anna Lima, entre outras. A presença feminina identificada no espaço literário natalense nos leva a conjecturar uma “invasão” da mulher no espaço público nas primeiras décadas do século XX. Essa tendência parecia acompanhar um movimento nacional, no qual as mulheres passavam a ocupar espaços que antes lhe eram negados. Para aquelas que se lançaram na escrita, essas passavam a se deparar com a possibilidade de uma escrita pública, saindo da condição anterior que dizia respeito ao exercício da arte de escrever realizado no refúgio do âmbito privado, seu lar. Palmyra Guimarães Wanderley nasceu no dia 06 de agosto de 1899 na cidade de Natal. Era filha do desembargador Celestino Carlos Wanderley e da escritora Ana de Freitas Guimarães Wanderley. Como podemos perceber, ao relatar a sua filiação, Palmyra Wanderley pertencia a importante família Wanderley (1). A jovem escritora era neta de Luiz Carlos Lins Wanderley, o primeiro médico norte-rio-grandense, formado pela Faculdade de Medicina da Bahia em 1856. Em 25 de julho de 1858, o jovem médico casou-se, em primeiras núpcias, com Francisca Carolina Wanderley. Do casamento gerou os frutos: Luiz Carlos Wanderley Filho, Manoel Segundo Wanderley, Celestino Wanderley (pai de Palmyra), Ezequiel Wanderley, Maria Carolina Wanderley e João Carlos. Legenda: Palmyra e amigas na cidade de Natal na década de 1920. Acervo particular de Cinira Wanderley Raymond. Em meio aos festejos elaborados pelo clube, a instituição propunha uma “Hora literária”, ou seja, o momento em que as festas no clube dedicavam um instante à literatura local. O momento literário era promovido pelos sócios do clube a fim de proporcionar, aos participantes, um momento de leitura, declamações de poemas e apreciações das produções literárias com a presença de alguns dos escritores do estado. Percebemos a presença de Palmyra Wanderley nos eventos da “Hora literária” realizados em um clube que só aceitava homens como seus sócios. O Natal-Club era uma associação fechada a um número específico de sócios. Serem aceitos como sócios em instituições como o Natal-Club, era privilégios de poucos. As candidaturas à associação eram examinadas por uma Assembleia Geral. Desse modo, o clube estava aberto apenas a “pessoas conceituadas, de posição social definida”. Os sócios deveriam contribuir, mensalmente, com o valor de cinco mil réis, “além do pagamento inicial em joia, no valor de vinte e cinco mil réis” (ESTATUTO, 1909). Contudo, no 11º aniversário do Natal-Club, foi anunciado nas páginas do Jornal A República a presença das: “as maviosas poetisas Palmyra e Carolina Wanderley” ao lado de outros nomes representativos do universo literário potiguar: Galdino Lima, Ezequiel Wanderley, Ponciano Barbosa e Moysés Soares (5). Até o presente momento, o Natal-Club não tinha sócias mulheres, tendo as mulheres acesso ao clube por meio de seus esposos e pais. Desenvolvendo essa lógica, acreditamos que as primas Palmyra e Carolina Wanderley foram convidadas à participação nas “Hora literária” devido à condição de parentesco com Ezequiel Wanderley – sócio do Natal-Club desde 1906 e tio das meninas – e do noivo da jovem Palmyra Wanderley com um dos sócio-fundadores do clube, Moysés Soares. Se por um lado, a presença de Palmyra Wanderley no Natal-Club se fazia possível devido às suas relações de parentescos, por outro, acreditamos que os convites dirigidos à jovem escritora também podem ser explicados pelo destaque que, no final da década de 1910, Palmyra Wanderley possuía no campo jornalístico e literário potiguar. Além do destaque, Palmyra Wanderley ainda se dedicou aos escritos de peças teatrais, operetas, hinos patrióticos e religiosos e modinhas populares. No entanto, os seus primeiros passos de uma escrita pública ocorram no campo jornalístico durante os anos de 1914-1915 com o surgimento da Revista Via Láctea. Nesse veículo comunicativo, Palmyra, Carolina Wanderley e suas companheiras escreveram sobre a educação e os interesses da mulher potiguar da década de 1910. O escrito de Palmyra Wanderley não foi pioneiro na difusão de uma voz feminina potiguar sobre a emancipação da mulher no estado do Rio Grande do Norte. Há uma vasta historiografia sobre a vida de Dionísia de Faria Rocha, conhecida por Nísia Floresta Brasileira Augusta. Nascida em um sítio localizado em Papari – que corresponde, atualmente, ao município que leva o seu nove: Nísia Floresta –, era filha de uma moça de família rica, porém analfabeta, Antônia Clara Freire, e, do advogado e escultor português, Dionísio Gonçalves (6). Ainda que não fosse pioneira, Palmyra Wanderley deu vida a um projeto de conquista nos primeiros anos de 1910: a participação da mulher na produção jornalística no meio intelectual potiguar. Durante o século XIX, identificamos alguns jornais e revistas dedicados ao público feminino no circuito comunicativo de períodos no Rio Grande do Norte. Todavia, estes periódicos eram publicados por homens como, por exemplo, O Íris (1875 – 1876), dirigido por Joaquim Fagundes e O Sorriso (1886), jornal literário produzido por Joaquim Cândido Pereira. Os primeiros nomes femininos nas páginas dos jornais e das revistas impressas norte-rio-grandense só apareceram no final do século XIX na revista Oásis (1894 – 1904), periódico do grêmio literário Le Monde Marche fundado pelos estudantes do colégio Atheneu Norte-rio-grandense. Nas páginas de Oásis, detectamos os nomes de Auta de Souza, Maria Carolina Wanderley (Sinhazinha), Anna Guimarães Lima (mãe de Palmyra). Essas foram as primeiras mulheres norte-rio-grandenses a ousar saírem da escrita feita no espaço privado do lar para a escrita pública nos jornais e nas revistas da capital. Já no início do século XX observamos a emergência de jornais dirigidos por mulheres, mencionamos aqui alguns deles: O Lyrio, de Adelle de Oliveira de Ceará-Mirim; O Batel, o qual colaborava Maria das Mercês, em Mossoró; A Esperança (1903), redigido por Izaura Carrilho, Dolores Cavalcanti e outras; A Infância e A Distração (1909), produzidos na cidade de Caicó. Esses dois últimos periódicos eram organizados pelas senhoras da alta sociedade caicoense. E ainda: Folha Nova (1913), dirigido por Alexandrina Chaves na cidade de Macau; O Alphabeto (1917 – 1919), sob a direção de Maria Antônia de Morais; A Salinésia (1926), criado por um grupo de jovens e apresentado oralmente no Teatro Moderno na cidade de Macau (CUNHA e LIMA, 2019, p.13). Na verdade, esse movimento é detectado ainda no século XIX, todavia tratava-se de uma dezena de jornais manuscritos que circulavam no Rio Grande do Norte no final do século. A produção manuscrita, provavelmente, pode ser justificada pela precariedade no que diz respeito às oficinas tipográficas instaladas no Rio Grande do Norte, pelo menos até a década de 1920, aliado às condições da vida daquelas mulheres que residiam no interior do estado afastadas do centro cultural potiguar. Em contrapartida, ainda que as condições fossem as mais adversas possíveis, essas mulheres desejavam se fazer ouvir, divulgar as suas ideias, muito embora esta divulgação ocorresse por meio de páginas manuscritas. Possivelmente, esta profusão de jornais inspirou o aparecimento da revista impressa Via Láctea. Identificamos algumas características sobre o periódico: possuía papel tamanho ofício, era dotado de oito páginas com duas colunas cada, quase não apresentava colunas fixas – o que pode indicar uma inconstância no que diz respeito às publicações –, e não possuía ilustrações, mas utilizava molduras em determinadas páginas, a fim de delimitar os espaços das matérias que compunham a revista. O periódico era mensalmente distribuído pela capital do Rio Grande do Norte e a forma de aquisição podia ser mediante a compra de um número avulso, ao custo de 400 contos de réis, ou por meio da assinatura – 3 mil contos de réis, para seis meses, e 1.500 contos de réis, para uma assinatura de três meses. As aquisições podiam ser realizadas no endereço da redação do periódico na Rua Conceição, número 19 – do número 1 ao 4 – e, posteriormente, na Rua Vigário Bartolomeu – do número 5 ao 8. Ambos os endereços estavam situados no bairro Cidade Alta: região de importância comercial na cidade do Natal. Portanto, ao todo, circularam oito números da revista feminina, entre outubro de 1914 e junho de 1915. O primeiro número da Via Láctea foi publicado no dia 1º de novembro de 1914. O corpo editorial da revista era formado pelas intelectuais Palmyra Wanderley, Carolina Wanderley, Stella Gonçalves, Maria da Penha, Joanita Gurgel, Anilda Vieira, Dulce Avelino e Stellita Melo. A partir do número 5, verificamos que é acrescentado ao corpo editorial Cordélia Silva e Maria Carolina Wanderley, apelida de Sinhazinha Wanderley. O primeiro número explica que a ideia de lançar o periódico veio da “febre do jornalismo que a cidade suspirava” (VIA LÁCTEA, 1914, p.1) e que o órgão era exclusivamente feminino, o que era raro na capital norte-rio-grandense. No primeiro número da revista, as editoras destacam o comprometimento com a educação e o interesse da mulher. Os interesses da mulher, a partir da análise da Via Láctea, nos descortinam um leque de temas que constam desde já no subtítulo que o periódico levava: “religião, arte, ciência e letras”. A revista Via Láctea estava aberta a colaborações. Bastava que a pessoa interessada em colaborar com o periódico enviasse a sua produção intelectual para a redação. Além disso, as editoras estabeleciam uma condição fundamental para as colaboradoras: que a identidade da autora deveria ser revelada ao corpo editorial, embora ela quisesse se ocultar em sua publicação utilizando um pseudônimo. Esta medida era necessária para garantir que a revista fosse escrita exclusivamente por mulheres, visto que, na época, era comum que escritores homens adotassem pseudônimos femininos (7). Desde o primeiro número, a revista Via Láctea mostra-se para o que veio. A produção cultural midiática exclusiva das mulheres potiguares buscava diferenciar dos temas publicados por homens, voltados ao público feminino. O que quer dizer que a revista desprezaria temas como, por exemplo, dicas culinárias, correio sentimental e conselhos de beleza. Assim, o programa da revista revela-se audacioso, por tomar rumos diferentes e por questionar o modelo de mulher construído nas primeiras décadas do século XX: o discurso do novo modelo de mulher “mãe-esposa-dona-de-casa” respaldado na ideia de uma natureza feminina que dotava a mulher, biologicamente, para desempenhar as funções da esfera da vida privada, que se resumia em: gerar filhos, cuidar da casa e do seu marido. O contradiscurso da revista Via Láctea, liderado por Palmyra Wanderley e sua prima, Carolina Wanderley, questiona o novo padrão de mulher “mãe-esposa-dona-de-casa” e propõe o modelo da mulher emancipada. Os discursos em defesa da emancipação da mulher parecem ter ganhado fôlego nos números da revista dirigida por Palmyra Wanderley, escrevia-se sobre “A emancipação da mulher” e sobre “O feminismo”. A revista circulou apenas até junho de 1915. Mesmo diante de toda dificuldade, Palmyra e Carolina Wanderley reclamaram os direitos da mulher e, por meio dos oito números de Via Láctea, reagiram contra a condição a que estavam submetidas. Ainda que o periódico chegasse ao fim, Palmyra Wanderley ainda continua fazendo ecoar o seu discurso em prol da emancipação da mulher nas páginas de outros periódicos da cidade do Natal. Por meio de seus escritos na revista Via Láctea e em outros periódicos, a jovem escritora consegue estabelecer diálogos com seus leitores, principalmente, com as suas leitoras. A intelectual apostou, através de seus escritos, na perspectiva tanto de estimular as mulheres da terra a adentrarem o universo intelectual, bem como de conscientizá-las dos direitos que possuíam e da condição na qual viviam. Foi por meio da prática da escrita, nas páginas da revista Via Láctea, que essa resistência pode ser desenvolvida como táticas necessárias para desvendar as sutilezas engendradas de forma criativa pelos dominados, com vistas a reagir à opressão que sobre eles incidem (CERTEAU, 2011, p.41). Sendo assim, Palmyra Wanderley reage às opressões de sua época, na medida em que consegue ocupar o espaço público jornalístico e social, que por muito tempo era negado às mulheres, e estabelece uma comunicação com outras mulheres. Um dos grandes méritos de Palmyra Wanderley foi o de abrir, e defender, espaço para que as mulheres norte-rio-grandenses pudessem divulgar os seus escritos, além de propagandear, por meio de seus textos, as ideias sobre a emancipação feminina. No entanto, a participação da mulher potiguar no espaço público acaba se revelando conflitante. Com um pensamento diferente daquele propagado na década de 1910, as ideias de emancipação feminina apontavam para o movimento feminista que ganharia força na década seguinte (1920). Contudo, Palmyra Wanderley pareceu-nos preconizar, assim como Nísia Floresta, algumas ideias feministas que seriam responsáveis por algumas conquistas nos anos seguintes. Além de sua atuação na imprensa local, Palmyra publicou dois livros mencionados aqui, escreveu crônicas, peças de teatro, conferências e novelas. A escritora alcançou uma projeção em outros estados, como Pernambuco e Paraíba. No dia 19 de novembro de 1978., apesar da trajetória notável, Palmyra Wanderley faleceu solitária e esquecida. * Sobre a autora: Maiara Juliana Gonçalves da Silva é professora de História da Escola Agrícola de Jundiaí (Universidade Federal do Rio Grande do Norte-UFRN). Possui formação nos cursos de bacharelado (2011) e de licenciatura (2014) em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e, atualmente, é aluna do doutorado no Programa de Pós-graduação em História na mesma instituição, onde desenvolve uma pesquisa sobre o movimento feminista e mulheres intelectuais na imprensa potiguar entre os anos de 1914 e 1934. NOTAS DE FIM A família Wanderley, natural da cidade de Assú, teve importante atuação na história da capital do Rio Grande do Norte. O primeiro membro da família a se destacar foi João Carlos Wanderley (1811-1899). Ainda no período imperial, João Carlos Wanderley ocupou notáveis cargos públicos na província, entre eles: chefe do partido liberal, deputado provincial, secretário do governo; deputado geral; inspetor do Tesouro e vice-presidente de Província. Apesar dos ilustres cargos, João Carlos Wanderley também se destacou em sua atuação na imprensa da capital potiguar. Com o passar dos anos, a família Wanderley foi aumentando. João Carlos Wanderley tratou de casar a sua filha, Francisca Carolina Wanderley, com Luiz Carlos Lins Wanderley (1831-1890), responsável pela impressão do jornal A República, periódico do partido republicano emergente no Rio Grande do Norte. Posteriormente, a tipografia de Luiz Wanbderley foi vendida a Pedro Velho de Albuquerque Maranhão, líder do supracitado partido. Mais informações: SILVA, Maiara Juliana Gonçalves da. “Em cada rua, um poeta. Em cada esquina, um jornal: a vida intelectual natalense (1889-1930). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-graduação em História. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2014. p.157-164. No ano de 1922, Moysés Soares chegou a construir um sobrado para os dois, localizado na Avenida marechal Deodoro da Fonseca com a Rua João Pessoa, no bairro Cidade Alta. No ano de 1900, o governador Alberto Maranhão decretou a lei número 145, de 22 de agosto do ano corrente, em que competia ao Estado a responsabilidade de publicar as obras daqueles considerados filhos do Rio Grande do Norte. Consultar: ACTOS LEGISLATIVOS. A República. 22 ago. 1900. O Club Carlos Gomes respondia aos apelos de uma sociedade que ansiava por um lugar em que pudesse ser promovida reuniões sociais e bailes dançantes. No ano de 1893, o Carlos Gomes agitava a vida natalense promovendo um salão que continha bilhar, sala de palestras, uma banda de música e uma sala de espera destinada às famílias da capital potiguar. Ver: ARRAIS, Raimundo. ANDRADE, Alenuska. MARINHO, Márcia. 2008. p.140-141. O momento dedicado à literatura no 11º aniversário do clube foi organizado com declamações de poesia dos escritores presentes no clube, a saber: Galdino Lima, Ponciano Barbosa, Palmyra Wanderley, Carolina Wanderley, e, por fim, Moysés Soares. Informação retirada de: NATAL-CLUB. A República. Natal, 9 jul. 1917. Nísia Floresta casou-se aos 13 anos de idade, e deixou o marido no ano seguinte. Foi repudiada pela família por ter largado o seu marido. Devido ao assassinato de seu pai, que fugiu para Recife em 1824, Nísia teve que sustentar a mãe e os três irmãos. Aos vinte anos tornou-se professora. No ano de 1832, publicou Direitos das mulheres e injustiça dos homens. A escritora, de posição republicana e abolicionista, ao longo de sua vida, escreveu ideias polêmicas utilizando da escrita para reivindicar igualdade e educação para as mulheres ainda no século XIX. No Rio Grande do Norte, as autoras Constância Lima Duarte e Diva Cunha Macedo foram responsáveis por um considerável número de produções acerca da vida e das obras de Nísia Floresta, entre elas: Nísia Floresta – vida e obra; Carta de Nísia Floresta & Augusto Comte; Nísia Floresta: a primeira feminista do Brasil; e a republicação de Direitos das mulheres e injustiça dos homens, de Nísia Floresta Brasileira Augusta. Mais informações, consultar: TELLES, Norma. Escritoras, escritas, escrituras. In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008. p.401-442. Na produção intelectual norte-rio-grandense detectamos alguns escritores que faziam uso do pseudônimo feminino: Henrique Castriciano (Rosa Romariz), Ferreira Itajubá (Stella Romariz) e Segundo Wanderley (Abelha Mestra). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARRAIS, Raimundo et. al. Corpo e alma da cidade do Natal entre 1900 a 1930. Natal: EDUFRN, 2008. p. 27. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand, 2005. BROCA, Brito. A vida literária no Brasil – 1900. São Paulo: José Olympio, 2008. p. 32. CARVALHO, Isabel Cristine de Macedo. Sutilezas femininas de Palmyra Wanderley. Natal: EDunP, 2012. CASCUDO, Luís da Câmara. História da cidade do Natal. Natal: Fundação José Augusto, 1989. CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano – Artes de fazer (1). Petrópolis: vozes, 2011. p. 41 ESTATUTO do Natal-Club. Natal/RN: Typografia d’A República, 1909. LOURO, Guacira Lopes. Mulher na sala de aula. IN: DEL PRIORE, Mary. História das mulheres no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 1997. p. 443-481. PRAZERES, Armando Sérgio dos. Via Láctea: um painel sobre o jornalismo feminino no Rio Grande do Norte. Monografia (Bacharelado em Comunicação Social) – UFRN, Natal, 1996. p. 32. SIRINELI, Jean François. Os intelectuais. In: REMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: FGV, 2011. SOIHET, Rachel. Feminismos e antifeminismo: mulheres e suas lutas pela conquista da cidadania plena. Rio de Janeiro: 7Letras, 2013. RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar. São Paulo: UNICAMP, 1984. p.63 REVISTA VIA-LÁCTEA (1914). TELLES, Norma. Escritoras, escritas, escrituras. In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008. P.401-442. WANDERLEY, Ezequiel. Poetas do Rio Grande do Norte. Natal: Fundação José Augusto, 1984.

por Thainã Teixeira Cardinalli* A trajetória de Madame Toussaint-Samson guarda alguns pontos de encontro com o Brasil: além de ter morado aqui durante doze anos (1849/50-1862), ela publicou um relato de viagem sobre este período, intitulado Uma parisiense no Brasil (1883). A longa permanência na cidade carioca, bem como sua obra onde narra os percursos e as experiências vivenciadas no país, não foram suficientes para incluir a autora como uma das referências sobre o Brasil imperial. Ao contrário dos relatos de viajantes-franceses como Charles Expilly (1814-1886) ou das famosas gravuras de Jean-Baptiste Debret (1768-1848). A vida e obra de Adèle somente nas últimas décadas começaram a ser estudadas por parte da historiografia (LEITE, 1984, 1997 e 2000; TURAZZI, 2003; HAHNE, 2004 e MAIA, 2016). Dessa forma, pretendo apresentar aqui uma breve biografia dela, dando atenção especial à sua estadia no Brasil. Nascida em Paris, em 1826, Toussaint-Samson cresceu imersa no ambiente teatral em razão da profissão de seu pai, famoso comediante da Comédie française. A partir desses espaços construiu suas redes de amizade e trabalho: por exemplo, suas amigas Madame Alan-Depréaux e Madame Arnould-Plessy foram ex-alunas de M. Samson; seu esposo, Jules Toussaint, era dançarino; e ainda, o primeiro jornal onde divulgou suas crônicas sobre perfis femininos, o La Sylphide, pertencia a H. Villemessant, jornalista e amigo de seu pai. A presença de M. Samson é tão marcante na vida profissional de Adèle que uma parte de seus trabalhos foram dedicados a ele, como a organização e a elaboração da introdução de seu livro de memórias, Mémoires de Samson de la Comédie Française (1882) e também a produção de textos endereçados aos jornais parisienses em defesa da imagem e caráter de seu pai, principalmente, diante das acusações de ter se envolvido amorosamente com uma de suas alunas, a atriz trágica Mademoiselle Rachel. Alguns anos após o casamento com Jules, em 1843, a França atravessou um momento conturbado com a Revolução socialista de 1848, a alta dos preços dos alimentos e a epidemia de cólera que se alastrou pelo país em 1849. O que trouxe dificuldades para a vida do jovem casal e os motivou a viajar para o Brasil em busca de trabalho. Seu esposo, apesar de ter pais franceses, havia nascido aqui, mas mudou-se logo quando criança para a França. Segundo Maria Inês Turazzi, um tio de Jules ainda morava no Rio de Janeiro e foi ele quem acolheu o casal em sua chegada. Enquanto Jules trabalhava nos palcos da capital e dava aulas de dança para as princesas Isabel e Leopoldina, Adèle ensinava línguas. Emprego que, conforme pontua em seu relato de viagem, era visto com maus olhos pelas brasileiras, responsáveis apenas pelos afazeres domésticos. De acordo com as documentações levantadas por Ludmila Maia (2016), Toussaint-Samson publicou textos em dois jornais da capital, o franco-brasileiro, Courrier du Brésil (1854-1862) e o Jornal das Senhoras (1852-1855). O primeiro deles pertencia à Ad. Hubert era destinado a comunidade francesa pertencente à Corte e divulgava notícias sobre o que ocorria na Europa e na França, bem como sobre fatos importantes da capital carioca. Nele, Maia identificou quatro textos da viajante, um poema e as seguintes crônicas, “De la femme pot au feu”, “De la femme auteur” e “De la femme incomprise”. Sendo estas duas últimas publicadas anteriormente no jornal La Sylphide, na década de 1840. [Toussaint, Adèle. De la femme auteur. Courrier du Brésil, 02/12/1855. Fonte: Hemeroteca Digital Nacional] São crônicas que retratavam perfis femininos: a “femme pot au feu”, por exemplo, era aquele tipo de mulher dedicada aos afazeres da casa, mas pouco atenta ao cuidado com os filhos; a mulher-autora, por seu turno, vivia em função da carreira literária, abandonando as obrigações domésticas; e por fim, tinha a “incompreendida” que em razão dos romances lidos, esperava encontrar um grande amor tal qual o de suas histórias. Esta preocupação com a moralidade feminina, como também os contatos de seu marido no meio teatral, provavelmente, contribuíram para que publicasse um poema em homenagem à diretora do Jornal das Senhoras, Joana Paula Manso de Noronha, em 1853. Segundo L. Maia, o elogio à diretora do jornal foi motivado pela estreia de suas peças teatrais nos palcos da capital. Neste poema, Adèle discorre sobre as qualidades de Manso, assim como enaltece seu papel de mãe. [Toussaint, Adèle. A Joana Noronha. Jornal das Senhoras, 25/09/1853. Fonte: Hemeroteca Digital Nacional] Cabe lembrar que o Jornal das Senhoras foi o primeiro periódico nacional elaborado por mulheres e dedicado exclusivamente a elas. Nele, continham sessões sobre “moda, literatura, belas-artes, teatro e crítica”, e mais, colunas onde se divulgava partituras e romances-folhetim (LIMA, 2010, p.228). Enquanto no Brasil, esta foi a única experiência de escrita em periódicos voltados ao público feminino, na França, após o seu retorno, Toussaint-Samson colaborou com o Journal pour Toutes (1864-1867), dirigido por Madame Niboyet, e o La Fronde (1897-1905), “journal quotidien féministe” (“jornal cotidiano feminista”), cuja diretora era Marguerite Durand. Em relação à sua atuação no Journal pour Toutes, lembro que o nome de Adèle apareceu pela primeira vez neste jornal, em 1865, com a tradução da novela de José de Alencar, Cinco Minutos. Romance publicado no Brasil em 1856, momento em que a viajante ainda morava no Rio de Janeiro, e cujo autor era próximo de Paula Brito, que, por sua vez, conheceu Jules Toussaint. Em 1851, Brito, famoso editor e tipógrafo carioca, organizou “uma noite de apresentações dirigida e dançada pelo marido de Adèle para apresentar o novo baile ao público da Corte (Maia, 2016, p. 120). Se a conjuntura político-econômica francesa impulsionou a vinda da viajante ao Brasil; as experiências e atividades exercidas aqui, por outro lado, foram fundamentais em seus escritos posteriores: são crônicas, textos ficcionais, poemas e livros que recuperaram os fatos observados no país para a construção de enredos e personagens, e/ou para a ilustração de seus argumentos. Dentre esses textos, além do relato de viagem Uma parisiense no Brasil, destaco a coletânea, Épaves, sourires et larmes (1870), cujos poemas eram dedicados à amigos e familiares, como também traziam referências de suas vivências nos trópicos. Em um deles expressa suas saudades da natureza tropical, em outro trata da escravidão, e, por fim, em um outro homenageia o célebre “ator trágico” brasileiro, João Caetano dos Santos. A partir desse breve panorama da vida e obra de Adèle Toussaint-Samson, observamos suas estreitas relações com o Brasil. O país não apenas marcou um momento de sua trajetória pessoal, mas foi, igualmente, personagem e/ou cenário de seus escritos posteriores; textos, aliás, que acompanharam a sua participação em periódicos voltados ao público feminino. Ao estudar trajetórias como a de Madame Toussaint-Samson, abrem-se novos campos para se pensar o entrelaçamento entre relatos de autoria feminina, viagens e trocas culturais entre a França e o Brasil. Referências bibliográficas: HAHNER, June. “Àdele Toussaint-Samson: Uma viajante estrangeira desconhecida e fugida”. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, 165 (423), p. 33-41. Abril/junho. 2004. Disponível em: https://ihgb.org.br/publicacoes/revista-ihgb/item/146-volume-423.html. Acesso em 09 setembro de 2020 LEITE, Miriam Moreira. (org.) A condição feminina no Rio de Janeiro, Século XIX. São Paulo-Brasília: Hucitec-Edusp-INL, 1984 ___________________. Livros de Viagem (1803-1900). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997 ___________________. Mulheres viajantes no século XIX. Cadernos Pagu, Campinas, 15, 2000 p. 129-143. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8635570. Acesso em 28 mai. 2020 LIMA, Joelma Varão. “Jornal das senhoras: as mulheres e a urbanização na Corte”. Cadernos CERU, v.21, n.2, 2010, pp.227-240. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/ceru/article/view/11926/13703. Acesso em 07 setembro 2020, MAIA, Ludmila de Souza. Viajantes de saias: gênero, literatura e viagem em Adèle Toussaint-Samson e Nísia Floresta (Europa e Brasil, século XIX). Tese em História defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH/Unicamp). Campinas, SP: [s.n.], 2016 TURAZZI, Maria Inez. Adèle Toussaint-Samson (1826-1911): um esboço biográfico. In TOUSSAINT-SAMSON, Adèle. Uma parisiense no Brasil. Trad. Maria Lucia Machado. Rio de Janeiro: Editora Capivara, 2003. *Thainã T. Cardinalli é formada em Ciências Sociais e, atualmente, doutoranda em História pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH-Unicamp). Perfil no Insta: @thaina.cardinalli

Feminista, professora, atuante no jornalismo e na vida pública caicoense; doente e vil, foi nomeada de “Rocas-Quintas” Júlia Augusta de Medeiros nasceu em 28 de agosto de 1896, em Caicó, estado do Rio Grande do Norte. Filha de Antônio Cesino de Medeiros e Ana Amélia de Medeiros, Júlia Medeiros era de origem rural, mas graças ao apoio de sua família e do seu espírito transgressor, conseguiu superar as adversidades e ingressar no Colégio Nossa Senhora da Conceição (CIC), instituição localizada na cidade de Natal, Rio Grande do Norte, dedicada ao ensino das meninas da capital. Posteriormente, desejando ser professora, ingressou na Escola Normal de Natal. Em 1926, retornou a Caicó e passou a lecionar no Grupo Escolar Senador Guerra. Nessa época, ela integrou o Jornal das Moças – o primeiro periódico exclusivamente feminino da cidade de Caicó –, em que reivindicava a inserção das mulheres nas Letras e na vida pública. O jornal tinha publicação semanal e era dedicado ao interesse da mulher. Sua circulação iniciou-se no dia 07 de fevereiro de 1926, na cidade de Caicó. Além de ser editado pela professora Georgina Pires e gerenciado por Dolores Diniz, o periódico ainda contava com as redatoras Santinha Araújo, Maria Leonor Cavalcante, Julinda Gurgel, como também várias moças da sociedade caicoense. Esse grupo de mulheres escreveu sobre literatura, humorismo e críticas com relação à condição da mulher na sociedade norte-rio-grandense. Ainda no que tange à sua atuação na imprensa potiguar, Júlia Medeiros também colaborou para a revista Pedagogium, órgão oficial da Associação de Professores do Rio Grande do Norte. Segundo o jornal A República (13 de março de 1926), a professora Júlia Medeiros escreveu, em 1925, um artigo intitulado “A missão da mulher”, em que ela questiona o papel da mulher na sociedade. Na cena cultural do estado do Rio Grande do Norte, a sua atuação era plural, uma vez que, além de professora, Júlia Medeiros era também responsável pela produção de pequenos dramas teatrais na cidade. Por volta de 1940, passou a conciliar as práticas pedagógicas com a direção do Hospital do Seridó, tornando-se a primeira mulher a ocupar esse posto. Ademais, atuou como vereadora de 1950 a 1958. Em 1960, perdeu a lucidez e foi levada, pela família, para Natal, na tentativa de restaurar sua saúde. Entretanto, não se recuperou e passou a perambular como mendiga, justificando seu apelido “Rocas-Quintas”, em referência à linha de ônibus que realizava o mesmo trajeto feito por ela. Excluída e esquecida, morreu em Natal em 29 de agosto de 1972, onde foi sepultada. Júlia Medeiros viveu de 1896 até 1972, em uma sociedade brasileira em que à mulher cabia, quase que exclusivamente, as posições coadjuvantes. No entanto, mesmo com a educação restrita aos homens, teve o privilégio de estudar em Natal, tornando-se professora. Ao regressar a Caicó, dedicou-se ao magistério desvinculando-se das estruturas sociais femininas do Seridó, as prendas domésticas. Vista como “louca”, Júlia Medeiros transgrediu a condição da vida privada imposta às mulheres: atuou em um periódico feminil, em que reivindicou os direitos negados ao público feminino e o letramento das camadas populares, se recusou a casar-se e foi a primeira mulher de Caicó a dirigir um automóvel. Além disso, administrou uma instituição pública na cidade e se elegeu vereadora. Sendo assim, a professora foi uma figura ilustre de sua era, por romper paradigmas sobre o espaço da mulher. Todavia, não teve destaque na história hegemônica, registrada a partir de padrões que reprovavam o seu protagonismo. Com a sanidade mental comprometida, vivendo como mendiga pelas ruas de Natal e fadada ao esquecimento, terminou seus dias como “Rocas-Quintas”, sucumbindo consigo a imagem irreverente de Júlia Medeiros. *A autoria do texto é atribuída a um trio de alunos, da Escola Agrícola de Jundiaí (EAJ - UFRN), composto por Ana Dandara Vieira Brito, Maria Helena Silva no Nascimento e Anderson Kaian de Lima Maniçoba, sob a orientação da professora e historiadora Maiara Juliana Gonçalves da Silva para a Olimpíada Nacional de História do Brasil (2019). O texto original foi publicado no Dicionário de verbetes Excluídos da História, organizado pela ONHB e disponível em: https://www.olimpiadadehistoria.com.br/especiais/excluidos-da-historia/verbetes/398 Sobre os autores: Ana Dandara Vieira Brito tem 19 anos e é residente na cidade de Parnamirim, Rio Grande do Norte. É Técnica em Agropecuária pela Unidade Acadêmica Especializada em Ciências Agrárias da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e atualmente cursa Licenciatura em Química na UFRN. Anderson Kaian de Lima Maniçoba tem 19 anos e reside na cidade de Parnamirim/RN. É Técnico em Agroindústria pela Unidade Acadêmica Especializada em Ciências Agrárias da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Atualmente, é discente do curso de Odontologia da UFRN. Maria Helena Silva do Nascimento tem 18 anos e reside na cidade de Parnamirim/RN. É Técnica em Agroindústria pela Unidade Acadêmica Especializada em Ciências Agrárias da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Atualmente, está no cursinho pré Enem. Orientadora: Maiara Juliana Gonçalves da Silva é graduada no curso de licenciatura em História (UFRN) e de bacharelado em História (UFRN). Possui mestrado em História e Espaço pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPGH-UFRN) e, atualmente, é aluna do doutorado em História na mesma instituição. Maiara Gonçalves é professora adjunta de História da Escola Agrícola de Jundiaí (UFRN) e é uma das editoras da nossa revista. Legenda da foto: Júlia Medeiros entre livros e papéis – Natal/RN (1925). Fonte: acervo particular de Manoel Pereira da Rocha Neto. BIBLIOGRAFIA: JORNAL DAS MOÇAS (1926-1932). Semanário feminino editado na cidade de Caicó, pelas professoras Georgina Pires, Dolores Dinis, Júlia Medeiros e um grupo de mulheres. FELIX, Ezequielda; MOREIRA, Aldo; FREIRE, Francisca Daise Galvão. Júlia Medeiros, peso na tradição, desejo de liberdade. Caicó, (Monografia) – Departamento de Estudos Sociais e Educacionais, Universidade Federal do Rio Grande do Norte,1997 MONTEIRO, Pe. Eymard L’Eraistre. Caicó: subsídios para a história completa do município. 2. ed. Natal: Nordeste Gráfica/ Sebo Vermelho, 1999. MORAIS, Maria Arisnete Câmara de. Leituras de mulheres no século XIX. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. RIBEIRO, Caroline Lasneaux. Publicações femininas: Uma análise da representação das mulheres no Jornal das moças (1926) e na revista Marie Claire (2005). Brasília, (Monografia). Centro Universitário de Brasília. 2006. ROCHA NETO, Manoel Pereira da. Jornal das Moças (1926-1932): Educadoras em manchete. Natal, (Dissertação). Universidade do Rio Grande do Norte. 2002. ROCHA NETO, Manoel Pereira. A educação da mulher norte-rio-grandense segundo Júlia Medeiros. Natal, (Doutorado). Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2005.

Por Letícia M. S. Pereira* “sou uma negra assumida, uma cineasta assumida, uma mãe assumida, uma avó assumida e vou por aí me assumindo em todos os sentidos. A mulher tem que se assumir.” Adélia Sampaio Adélia Ferreira Sampaio, nasceu em Belo Horizonte - MG, em 1944, é considerada a primeira cineasta negra do Brasil, e a primeira a produzir um longa-metragem ainda nos anos de 1980. Foi casada com o jornalista Pedro Porfírio Sampaio com quem teve dois filhos: Wladimir Porfírio (jornalista) e Gogoia Sampaio (figurinista). Adélia ingressa no mundo cinematográfico, em 1967, na distribuidora DIFILM – Distribuição e Produção de Filmes Brasileiros Ltda, atuando como telefonista. Adélia Sampaio é uma mulher negra, filha de empregada doméstica, com pai desconhecido. Devido às condições de vulnerabilidade econômica da família, deixa a cidade de Belo Horizonte e vai para o Rio de Janeiro, ainda aos 4 anos. A relação trabalhista da mãe impõe a separação entre elas, Adélia passa parte da infância num internato em Minas Gerais, retornando ao contato da família somente aos 13 anos. Durante todo esse tempo, a mãe trabalhava para juntar recursos e pagar a “dívida” de escola, roupas e passagens, ou seja, os custos do envio forçado ao Arraial Santa Luzia dos Rios das Velhas, uma espécie de abrigo para meninas pobres e, assim, poder trazer de volta a filha ao convívio familiar. A irmã Eliana Cobbett, revisora da Tabajara Filmes, foi sua maior incentivadora e a pessoa responsável por apresentar a Sétima Arte para Adélia. Ela tinha 13 anos quando se deparou, pela primeira vez, com a sala escura e sua grande tela mágica, exibia-se o filme Ivan, o terrível (direção de Serguei Eisenstein, 1944), momento em que se encanta pelo cinema, e passa a desejar ser uma realizadora. Já adulta, descobre que a DiFilm estava precisando de uma telefonista, nesse momento os caminhos para viabilizar seu sonho começam a se desenhar. A DiFilm era um reduto do Cinema Novo, entre um telefonema e outro, ela organizava as sessões do Cineclube, ademais interagia e observava o trabalho das equipes e dos diretores cinemanovistas. Adélia Sampaio começa a executar pequenas funções e vai, pouco a pouco, passando a dominar os recursos e as técnicas do audiovisual. Atuando como assistente de produção, assistente de direção, diretora de produção, produtora executiva, roteirista, entre outros. Em sua atuação como diretora, destacam-se os seguintes filmes: 5 (cinco) curtas-metragens: Denúncia Vazia (1979); Agora um Deus dança em mim (premiado) (1984); Adulto não brinca (1979); Na poeira das ruas (1984), e, o mais atual, O mundo de dentro (2017). O documentário Cotidiano (1981); assim como, outros 2 (dois) documentários sobre a Ditadura Militar: Fugindo do passado: um drink para Tetéia, 1987; e, História Banal, 1987. Em 2004, em co-direção com Paulo Markum, lança o filme AI-5 – o dia que não existiu (2004). O seu longa-metragem Amor Maldito (1984) marca sua carreira em pelo menos duas frentes: 1) primeiro longa-metragem realizado por uma diretora negra, no Brasil e na América Latina; 2) o primeiro a trazer como tema um relacionamento homossexual feminino. O filme não consegue verba da Embrafilme (que classifica o tema absurdo), mas é viabilizado por sistema de cooperação. Outro problema enfrentado foi com a distribuição, a condição para ser exibido em São Paulo, no Cine Paulista, era se transvestir de pornográfico. O crítico da Folha de São Paulo, Leon Cakoff, escreve uma matéria importante valorizando o filme. Essa ação favorece a ampliação do número de salas de exibição e o retira desse rótulo de pornô. A história é baseada num caso real, narra o julgamento da empresária Fernanda Maia (atriz Monique Lafond) acusada de matar sua namorada, a ex-miss simpatia Suely Oliveira (atriz Wilma Dias), que se suicidou. A trama transita entre a violência / preconceito do júri e as lembranças dos momentos vividos pelo casal lésbico. Sobre suas produções, Sampaio afirma: “Eu acredito no cinema onde se possa denunciar ou alertar as pessoas. Todos os curtas são baseados em fatos reais, até mesmo o AI5, em que fiz a direção artística (reconstituindo os fatos com atores) e com a direção geral de Paulo Markun.” (entrevista à revista Catarinas) Interessante destacar, na trajetória da diretora, as micropráticas que levaram a telefonista a aprender sobre montagem, fotografia, roteiro; passando a atuar como diretora de produção, diretora de arte, programadora de revistas eletrônicas, entre outros. Essas microrresistências, na perspectiva de Michel de Certeau (2000), são estratégias e táticas do cotidiano que escapam às relações de poder exercido sobre eles. Me aproprio do termo para falar de microrresistências negras, considerando as práticas cotidianas que estão ligadas a pequenos movimentos de ruptura do modelo pré-estabelecido, ou seja, as dinâmicas do “micropoder” constituindo espaços de resistência afrodiaspóricas. Conforme Viviane Ferreira, é preciso visibilizar a produção de Adélia Sampaio, por ser a “primeira mulher brasileira negra a dirigir um longa-metragem – buscando a subjetividade de seu pertencimento racial em obras como ‘Amor Maldito’ (1984)”. (FERREIRA, 2016). Infelizmente, seu nome ainda é pouco conhecido dentro da academia e cursos de comunicação do Brasil. Até a publicação da tese de doutorado da professora Edileuza Penha de Souza, em 2013, o nome de Adélia Sampaio era completamente ignorado, mesmo em publicações e artigos sobre a presença negra no Cinema Nacional, ou sobre a constituição do Cinema Negro Brasileiro. Outro agravante, é o fato de seus curtas-metragens (negativos masters de imagem e som) entregues à Cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro terem desaparecido. O que dificulta ainda mais o acesso a suas produções. Quando perguntada sobre a amnésia da indústria do audiovisual, responde: “Deve ser porque sou preta, né?”. É evidente a presença do racismo e do machismo, no tocante a invisibilidade de seus trabalhos no cenário cinematográfico brasileiro. Adélia Sampaio, em entrevista para blogueiras negras, destaca: “Cinema é, sem dúvida, uma arte elitista, aí chega uma preta, filha de empregada doméstica e diz que vai chegar à direção, claro que foi difícil! Até porque me dividia entre fazer cinema e criar meus dois filhos.” (GONÇALVES; MARTINS, 2016) Entre os anos 1970-1980, foram muitas as suas realizações na DiFIlme e em sua produtora, além dos filmes citados, participou em mais de 70 outras produções, o que demonstra a gravidade desse apagamento e sugere o esforço realizado por ela para se manter ativa e atuante no audiovisual. “A terra é um grande útero pedindo para ser fertilizado pelo olhar da mulher” Adélia Sampaio Na tentativa de registrar – em meio às limitações que envolvem uma pandemia (2021) e no auge dos seus 77 anos - seus novos e férteis projetos que incluem a produção de um longa-metragem A Barca das Visitantes, no qual revive episódios da Ditadura Militar com base em cartas enviadas aos presos políticos, ainda sem patrocínio. E dos curtas Meu Nome é Carretel e Amor em Estado Terminal. Atualmente, visando disponibilizar seus filmes abre um canal no YouTube – Adélia Sampaio (Disponível em: https://youtube.com/channel/UCVcvsoqRG6qC09VU-KV5rCw). A peculiaridade das microrresistências cotidianas se dá na ressignificação de práticas, conteúdos e lugares sociais. Assim, Adélia Sampaio sai da invisibilidade e passa a ser representatividade feminina e negra, no Festival Palmares de Cinema (FepalCine), em março de 2016, ela foi homenageada batizando uma categoria com o título de “Adélia Sampaio”, visando promover a visibilidade do trabalho de jovens cineastas negras. A partir do I Encontro Internacional de Cineasta e Produtoras Negras foi criada a Mostra competitiva de Cinema Negro Adélia Sampaio – quando mulheres fazem cinema, 2016-2019 – Brasília, na Universidade Federal de Brasília – UnB. A Universidade Federal do Recôncavo Baiano – UFRB realiza a Mostra com Mulheres, no Festival de Documentários de Cachoeira-BA, sendo um dos programas uma homenagem a Adélia Sampaio, sob a curadoria de Yasmin Thayná (RJ), para citar algumas homenagens. Destaca-se aqui que a visibilidade dos trabalhos de Adélia Sampaio - para além do processo de exclusão que ainda predomina sobre o acesso dos/as negros/as à “sétima arte” - é possível infringir rasuras, alterar os lugares sociais e propor mudanças futuras, no qual possibilita hoje o reconhecimento de uma mulher negra, como uma importante diretora do cinema nacional. Constitui-se repertórios alternativos, que trazem à cena outras tradições e uma diversidade de formas de representação que lutam para serem incorporadas às políticas simbólicas da memória cultural. PARA SABER MAIS... AGUIYRRE, Claudia. Adélia Sampaio e o pioneirismo cinematográfico de Amor Maldito. Portal Catarinas. Disponível em: Adélia Sampaio e o pioneirismo cinematográfico de Amor Maldito | Portal Catarinas FERREIRA, Viviane. Cinema Negro: Totem vem sempre de longe. No Brasil. 18/Jul./2016. Disponível em: http://nobrasil.co/cinema-negro-totem-sempre-vem-de-longe/ Acesso em: 04 ago. 2016. GONÇALVES, Juliana e MARTINS, Renata. O racismo apaga, a gente reescreve: conheça a cineasta que fez história no cinema nacional. 09 mar. 2016. Disponível em:http://blogueirasnegras.org/2016/03/09-o-racismo-apaga-a-gente-reescreve-conheca-a-cineasta-negra-que-fez-historia-no-cinema-nacional. Acesso em: 20 set. 2016. NEVES, Bia. Conheça Adélia Sampaio, a primeira cineasta negra brasileira. Garotas Geeks. Disponível em: Garotas Geeks | Conheça Adélia Sampaio, a primeira cineasta negra brasileira PEREIRA, Letícia M. S. Corpografias negras em telas: memórias, identidades e culturas afrodiaspóricas em filmes do Cinema Negro Brasileiro. 242f.il. 2017. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura. Universidade Federal da Bahia, 2017. SOUZA, Edileuza Penha de. Mulheres negras no cinema brasileiro: estratégia de afeto, amor e identidade. In: Fazendo Gênero 8: Corpo, violência e poder. Florianópolis, 25-28/Ago./2008. *Letícia M. S. Pereira é uma das editoras da Revista Mulheres do Fim do Mundo, doutora em Literatura e Cultura (UFBA) e defendeu uma tese sobre Cinema Negro no Brasil.

Por Flavia Veras* "Para a maioria dos comentaristas da época, Itália Fausta foi a grande dama do teatro brasileiro da sua época, e um dos mais generosos temperamentos trágicos que o nosso teatro já teve, capaz de interpretar com êxito alguns dos grandes papéis que consagraram Eleonora Duse e Sarah Bernhardt. O marasmo em que o teatro brasileiro se encontrava durante o auge de sua carreira, o predomínio de um repertório medíocre, do qual só poucas vezes ela conseguiu fugir, e a virtual ausência de diretores dispostos a abrir caminhos rumo à modernidade cênica impediram-na de concretizar plenamente as potencialidades de excepcional trajetória de intérprete a que a sua privilegiada inteligência, sensibilidade, cultura e abertura para o novo a teriam predestinado numa época mais recente. Mas o seu prestígio de atriz conferiu-lhe uma ascendência sobre seus colegas mais jovens e sobre a opinião pública, de que ela se serviu sistematicamente, através de lúcidos depoimentos públicos, entrevistas, etc., preconizando a necessidade da criação de um teatro diferente daquele que o panorama em que viveu a condicionou, na maioria das vezes, a fazer" MICHALSKI, Yan. Fausta Polloni é o nome de registro da talentosa atriz de família italiana, Itália Fausta. Nascida em São Paulo em 1878, foi uma grande artista tanto por seu trabalho no processo de renovação do teatro brasileiro, quanto por seu papel de militante anarquista e líder sindical da Casa dos Artistas, tendo feito importantes contribuições na luta pelos direitos das mulheres do teatro. Ela começou sua carreira ainda criança como artista amadora em São Paulo, mas ganhou espaço e o gosto do público a ponto de ser reconhecida como uma dama do teatro brasileiro. Contudo, a carreira profissional iniciou efetivamente em 1906 quando excursionou pelo Brasil em companhia de artistas portugueses, inclusive, indo para Lisboa em 1913. Voltou para o Brasil no contexto da Primeira Guerra Mundial (1914 – 1917), da qual o Brasil participou após ter navios mercantes bombardeados. Para driblar os problemas econômicos e as dificuldades de fazer teatro no contexto da pandemia de gripe espanhola em 1918 criou-se o Teatro da Natureza, que consistia na encenação de peças ao ar livre. Eram realizadas no Campo de Santana e criou empregos para os artistas, que viviam momentos difíceis devido à conjuntura histórica. No primeiro quarto do século XX, em parte devido à forte influência italiana, se destacou como atriz em um contexto que se falava em “fundar o teatro nacional”, ao mesmo tempo em que se buscavam referências estrangeiras. Itália Fausta, em um período de pouco financiamento público para a área cultural, protagonizou a importante Companhia Dramática do Estado de São Paulo, com incentivo do Conservatório Dramático de São Paulo. Em 1917, fez uma turnê ao Rio de Janeiro com o drama “Ré Misteriosa”, que de tão exitosa fez com que a atriz permanecesse definitivamente na então capital, com a “Companhia Dramática Nacional”, posteriormente chamada de Companhia Itália Fausta. Itália Fausta também se dedicou ao teatro operário nos anos 1910-1920. De cunho notadamente anarquista, por vezes se confundiu com as revistas, por fazer críticas sociais, explorando a nudez e os temas do cotidiano. Estas peças utilizavam as técnicas habituais do teatro como a apoteose, as danças e as músicas para colocar os temas que desejavam tratar: O teatro foi escolhido para a pregação e difusão de um ideário social de libertação, às vezes anticlerical, que de um lado, pelo caráter político de suas atividades teatrais; e de outro pela simples busca do conhecimento, fez o operariado refletir sobre manifestações populares e descobrir problemas básicos de sua existência de classe (CABRAL, 2008, 77 – 84). No sentido da construção do teatro moderno brasileiro, Itália Fausta participou de iniciativas como o Teatro de Brinquedo, de Eugênia e Álvaro Moreira, nos anos 1920, e do Teatro do Estudante do Brasil (TEB), de Pascoal Carlos Magno, nos anos 1930. Também trabalhou com personalidades reconhecidas do teatro moderno como Maria Della Costa e Ziembinski. Itália Fausta conectou a luta pelo teatro com suas expectativas por uma sociedade mais justa. Ela ocupou o cargo de presidenta da Casa dos Artistas, o sindicato dos artistas, entre 1935 e 1936. A questão da mulher artista foi levantada com muito vigor como ficou registrado no Anuário Teatral da Casa dos Artistas, em 1938. Como ex-presidente ela assinou a matéria “A vida da mulher que trabalha em teatro” tratando sobre a mulher artista, na qual discute os desafios da profissão e as intercessões entre o trabalho doméstico, o teatro e a criação dos filhos. Essa matéria também versava sobre a necessidade de toda a companhia ser equipada com um guarda-roupa que possibilitasse as artistas de não terem gastos incompatíveis com seus cachês na compra de roupas para atuação. A mulher de teatro trabalha mais de oito horas por dia, sempre mais que em qualquer outra profissão. Em geral ensaia de uma às cinco. Volta para o teatro às sete horas, trabalha até meia noite e, muitas vezes, ensaia até a madrugada. Aos domingos e feriados, enquanto os demais profissionais descansam, ela trabalha, e se os diaristas recebem seus honorários dobrados, os artistas trabalham de graça, sem pagamento algum pelas horas extras de serviço. Em teatro ninguém goza das regalias da lei de férias... Por enquanto, as leis trabalhistas têm trazido muito pouco benefício à gente de teatro. Requer, talvez, fiscalização melhor, outra regulamentação. Um dos problemas difíceis para a mulher é seu vestuário. Não se suporta mais uma atriz modestamente vestida. A artista, com encargo de família, não pode representar certas peças por falta de roupas caras. Os contratos deveriam fixar um terço do ordenado para a compra de roupas, correndo o excedente por conta das empresas. Quando existirem em todo Brasil teatros populares, funcionando regularmente com companhias nacionais, estará resolvido o problema do teatro nacional. Então, em todas as classes surgirão elementos artísticos e ser atriz deixará de ser uma profissão singular para tornar-se uma profissão comum, acessível a todas as mulheres que se sentirem atraídas pela mais bela e mais humana de todas as artes. (Itália Fausta, 1938) No final da década de 1940 confrontou o empresário Vital de Castro contra sua intenção de transformar o Teatro Fênix em um cinema. Essa era uma prática comum, tendo em vista as dificuldades de arregimentar o público teatral, mas que afetava diretamente as companhias teatrais e os artistas. Ela convocou os artistas a ocupar os camarins com cama e mesa, o que foi um escândalo, mas garantiu a permanência da companhia em atividade e o funcionamento (como teatro) do Teatro Fênix. Com uma vida de muitas lutas, projetos, sonhos e criatividade, após uma turnê pelo norte do Brasil em 1951, Itália Fausta morreu em sua casa em Santa Teresa no Rio de Janeiro, aos 73 anos, deixando uma contribuição enorme para o estudo da história do teatro no Brasil. Saiba Mais Anuário da Casa dos Artistas (RJ), 1937. “Casa dos Artistas a sua fundação”. Disponível no arquivo da Biblioteca Nacional. Anuário da Casa dos Artistas (RJ), 1938. “A vida da mulher que trabalha em teatro” por Itália Fausta. Disponível no arquivo da Biblioteca Nacional. CABRAL, Michelle Nascimento. Teatro Anarquista, Futebol e Propaganda: tensões e contradições no âmbito do lazer. Rio de Janeiro, 2008. Dissertação (Mestrado em História) Universidade Federal do Rio de Janeiro. MICHALSKI, Yan. Itália Fausta. In:_________. PEQUENA Enciclopédia do Teatro Brasileiro Contemporâneo. Material inédito, elaborado em projeto para o CNPq. Rio de Janeiro, 1989. VERAS, Flavia. Tablado e Palanque – A formação da categoria profissional dos artistas no Rio de Janeiro (1918 – 1945). Saarbrücken: Novas Edições acadêmicas, 2014. VERAS, Flavia. “Fábricas da Alegria”: o mercado de diversões e a organização do trabalho artístico no Rio de Janeiro e Buenos Aires (1918 – 1945). Tese (Doutorado em História, Política e Bens Culturais) – FGV – Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2017. Imagem: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa349575/italia-fausta *Flavia Veras é editora da Revista MFM, membro do LEHMT-UFRJ e professora de ensino básico.

Por Ynaê Lopes dos Santos* No dia 15 de outubro comemoramos o Dia do(a) Professor(a). Uma data que deveria trazer inúmeras reflexões, a começar pela insistência que o Estado brasileiro tem em manter essa profissão no limite da precarização. Mas esse dia também fala sobre a presença negra no magistério. Devemos muito à Antonieta de Barros - responsável pela lei que transformou essa data num marco nacional. “A alma feminina se tem deixado estagnar, por milhares de anos, numa inércia criminosa. Enclausurada por preconceitos odiosos, destinada a uma ignorância ímpar, resignando-se santamente, candidamente, ao deus Destino e a sua congênere Fatalidade, a Mulher tem sido, de verdade, a mais sacrificada metade do gênero humano. Tutelada tradicional, irresponsável pelos seus atos, boneca-bibelot de todos os tempos”. Antonieta Barros - Revista Terra. Ano 1, nº17, 1920 Nascida em 1901 em Santa Catarina, criada apenas pela mãe (empregada doméstica que havia nascido como escravizada), Antonieta foi uma das mais importantes professoras da sua época. Ensinando Português e Literatura, Antonieta fundou um Curso Particular para a alfabetização de pessoas carentes, e atuou como docente e diretora do atual Instituto de Educação. Antonieta também fundou jornais e publicou crônicas que tratavam de uma série de assuntos. Atuou na política, tendo sido a primeira deputada negra eleita no Brasil. Participou da constituinte de 1935, sendo responsável pelos capítulos Educação, Cultura e Funcionalismo, até o golpe de Getúlio Vargas. Em 1937 publicou o livro “Farrapo de Ideias” e continuou atuando energicamente em prol do poder transformador da educação, voltando à vida política após a restauração democrática. Suas bandeiras pregavam a educação de qualidade para todos, a luta contra o racismo e a igualdade de condições para as mulheres! Faleceu em março de 1952. “Não será a tristeza do deserto presente que nos roube as perspectivas dum futuro melhor (..), onde as conquistas da inteligência não se degenerem, em armas de destruição, de aniquilamento; onde os homens, enfim, se reconheçam fraternalmente. Será, contudo, quando houver bastante cultura e sólida independência entre as mulheres para que se considerem indivíduos. Só então, cremos existir uma civilização melhor.” Antonieta Barros. Jornal República, 13 de maio de 1932 Uma história e tanto! Uma história que é nossa! Uma história que só torna maior a necessidade de comemorarmos o dia de hoje, não nos esquecendo que professor, é para vida toda. *Ynaê Lopes dos Santos é historiadora e Professora Adjunta de História da América da UFF. Instagram: nossos_passos_vem_de_longe Twitter: @ynaelopes Quer saber mais? MOTT, Maria Lúcia de Barros. Escritoras negras resgatando a nossa história. Coleção Papéis Avulsos,1989. ESPINDOLA, Elizabete M. Antonieta de Barros: Educação, Gênero e Mobilidade Social em Florianópolis na primeira metade do século XX. (Tese de Doutorado em História Social) Programa de Pós-Graduação em História Social. Belo Horizonte: UFMG, 2015. ESPÍNDOLA, Elizabete Maria. ANTONIETA DE BARROS: EDUCAÇÃO, CIDADANIA E GÊNERO PELAS PÁGINAS DOS JORNAIS REPÚBLICA E O ESTADO EM FLORIANÓPOLIS NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX. Disponível em <http://www.escravidaoeliberdade.com.br/site/images/Textos.6/elizabeteespindola.pdf > Acesso em: 18 de fev. de 2021. Veja o vídeo curta-metragem documentário “Antonieta”, sobre Antonieta de Barros: https://www.youtube.com/watch?v=4gTKJabYgKI Ficha técnica Direção: Flávia Person Roteiro: Flávia Person Produtora: Magnolia Produções Culturais e Ombu Arte Montagem: Yannet Briggiler Edição de Som e Trilha Sonora: Diogo de Haro Pesquisa e Consultoria Histórica: Fausto Douglas Corrêa Júnior Assistência de Produção: Gabi Bresola e Matias Eastman Assessoria de Comunicação: Barbara Pettres Edição de Texto: Fábio Brüggemann Preparação Vocal: Barbara Biscaro Mixagem: Diogo de Haro e Paulo Costa Franco (Estúdio Ouié) As dicas e citações desse artigo foram adicionadas pela equipe editorial da Revista MFM

Por Tássia Fernandes Paris* “Como verdadeira traça foi carcomendo, estragando as traves do edifício negro o célebre ‘Club do Cupim’, que foi um grande exército de abnegados. (...) Nem as senhoras ficaram inactivas: para melhor meio de acção fundaram a Sociedade Ave Libertas, que teve em seu seio, entre outras senhoras notáveis, (...); Leonor Porto, [que] sacrifica os seus interesses, põe o seu atelier de costuras e a sua competência profissional ao serviço desta causa; e contam que muitas vezes a sua habilidade disfarçava alentado molecote em veneranda matrona que conduzida pelo braço de algum membro do citado Club chegava ao caes e (...) embarcava, fugindo (...) para a terra da Luz, em busca da liberdade” (Jornal do Recife, ed. 136, 20 maio 1917). No dia 17 de dezembro de 1840, na cidade do Recife, nasceu Leonor Jorge Bastos, filha de Fortunato Pereira da Fonseca Bastos, comerciante recifense, e Carolina Leopoldina Jorge Bastos, comerciante lisboeta moradora do Recife. Leonor foi batizada com o nome de sua avó materna, Leonor Jorge. Não se sabe ao certo o número de irmãos que Leonor teve, sendo cinco os nomes conhecidos: José Fortunato da Fonseca Bastos, Joaquim Jorge da Fonseca Bastos, Gaspar Bastos, D. Adelaide Bastos Gomes Penna e D. Zulmira Bastos de Souza Monteiro. Passou a assinar Leonor Bastos dos Santos Porto, após o casamento com o comerciante portuense Antonio Augusto dos Santos Porto. Não sabemos ao certo a data do matrimônio. No entanto, na primeira referência em periódicos recifenses, D. Leonor Porto já figura com o seu nome de casada. Esta primeira notícia diz respeito à sua participação em uma festividade da Igreja Católica, em 1873 (Diário de Pernambuco, ed. 8, 11 jan. 1873). Leonor foi bastante atuante nos compromissos religiosos, participando de diversas irmandades e celebrações. Antonio e Leonor tiveram, ao todo, nove filhos que chegaram à vida adulta: Carolina Porto de Carvalho, Antonio Augusto dos Santos Porto (homônimo ao pai), João Augusto dos Santos Porto, Albertina Porto de Oliveira, Adelaide Porto da Silveira, Leonor Porto de Castro, Fortunato Augusto dos Santos Porto, Fausto Tancredo dos Santos Porto e Mario Augusto dos Santos Porto. D. Leonor Porto aparece, a partir do ano de 1879, como modista e costureira, em diversos periódicos do Recife, divulgando seus préstimos para meninas, senhoras e crianças. Seu futuro marido e o futuro cunhado, José Fortunato dos Santos Porto, foram citados, em conjunto com seu pai, Fortunato Bastos, em 1854, no mesmo anúncio do Jornal “O Liberal Pernambucano”, como vendedores de bilhete de loteria na Praça da Independência, no bairro de Santo Antônio (O Liberal Pernambucano, ed. 460, 24 abr.1854) A partir de 1880, Antonio Augusto Porto é citado em diversos anúncios de periódicos da mesma cidade como administrador de uma casa de bilhetes de loteria, a Casa Feliz, situada na mesma praça. Portanto, indo ao encontro com o afirmado por Alcileide Cabral do Nascimento e Noemia da Luz (2012, pp. 130-131), Leonor Porto não era proveniente de nenhuma família de posses ou de renome de Pernambuco, sendo todos comerciantes. Ao que parece, a aproximação de Leonor das damas da sociedade recifense se deu pelo seu trabalho como modista e pela devoção católica. Essa aproximação foi fundamental para que ela adentrasse o círculo abolicionista da cidade, já que, de acordo com Silva e Barreto (2014, p. 51) as mulheres abolicionistas, no Brasil, pertenceram preponderantemente à elite econômica e intelectual do país. As primeiras referências a Leonor Porto ligadas ao movimento abolicionista datam de 1884 e surgem no contexto da divulgação das reuniões da Sociedade de Senhoras Abolicionistas 25 de Março (Diário de Pernambuco, ed.104, 6 maio 1884). Fundada em 20 de abril de 1884, a sociedade passa a ser nomeada, já em sua segunda sessão, como Sociedade Abolicionista Ave Libertas, pois já havia uma sociedade registrada com a denominação “25 de março” (Diário de Pernambuco, ed. 104, 6 maio 1884). Durante o primeiro semestre de 1884, Leonor Porto exerceu a função de tesoureira da Sociedade Ave Libertas. Nesse curto período de tempo, são relatados diversos eventos e espetáculos em que a sociedade participou, seja como organizadora principal, seja como participante em eventos de outras sociedades. Desta maneira, a Sociedade Ave Libertas se consolidou como importante membro na rede de liberdade da cidade do Recife, tecendo diversas parcerias com várias organizações abolicionistas. Em 24 de Agosto de 1884, a Ave Libertas procedeu a uma nova eleição, nomeando Leonor Porto como sua presidente, Ernestina Lopes de Barros como vice, Odila Pompílio como 1ª secretária, Carlota Vilela como 2ª secretária e como tesoureira Flora Guedes Alcoforado (Diário de Pernambuco, ed. 196, 26 ago.1884). A primeira sede da Sociedade Ave Libertas foi instalada no primeiro andar do número 31 da Rua do Imperador. Na edição 205 do Jornal do Recife, dia 10 de setembro de 1885, noticiou-se a festa de aniversário da instalação da sede da Sociedade Ave Libertas, que ocorreu nos salões do Club Carlos Gomes. A solenidade foi iniciada com uma sessão magna da sociedade, na qual, após o discurso da presidente reeleita Leonor Porto, a primeira secretária, Odila Pompílio, realizou a leitura do relatório anual do primeiro ano social do grupo. Neste relatório, prestou-se contas de mais de 200 alforrias conseguidas, por pecúlio ou sem indenização, enfatizando os esforços pessoais da presidente da sociedade para tal feito. Com o fim da escravização de pessoas no Brasil, a 13 de maio de 1888, a Sociedade Ave Libertas, assim como as demais sociedades abolicionistas do país, foi dissolvida. Em nota publicada, no Diário de Pernambuco, na edição 111, no dia 17 de maio de 1888, a diretoria da Sociedade Ave Libertas se pronunciou. Na publicação, intitulada “Ave Libertas”, as sócias reconheciam que a questão não estava resolvida, pois apesar de alcançado o principal objetivo da causa, havia ainda uma tarefa, “a de olhar com desvelo para a sorte” dos libertados. No período imediatamente posterior à abolição, Leonor Porto passou a se dedicar novamente às suas atividades mais corriqueiras, como o ofício de modista e costureira e a devoção à Igreja Católica. No entanto, em 1891, a modista interrompe suas atividades, após a morte de seu esposo, Antônio Augusto Porto, vítima de “sofrimentos cardíacos” (Jornal do Recife, ed.102, 7 maio 1891). Leonor retorna ao ofício, publicando seus anúncios com maior frequência apenas no ano seguinte (Jornal do Recife, ed.258, 13 nov. 1892). Apesar do retorno, nos anos que se sucederam, a modista se dividiu entre o seu ofício e as estadas no Rio de Janeiro, aonde residiam alguns de seus filhos e netos. Leonor decide por se mudar de forma definitiva para a capital da República em 1897, constituindo leiloeiro para os seus objetos e mobília (Jornal do Recife, ed.43, 23 fev. 1897). A líder abolicionista embarcou para o Rio de Janeiro, via Bahia, em 15 de abril de 1897 (Jornal do Recife, ed.86, 18 abr.1897). Na edição 32, Jornal do Recife de 8 de fevereiro de 1901, noticiou-se a morte de D. Leonor Porto, ocorrida no dia 6 de fevereiro deste ano. Não é noticiada a causa da sua morte. Para homenageá-la, no âmbito das comemorações pela Abolição, em maio de 1902, renomeou-se uma rua: a Rua da Conquista, no bairro da Soledade, passou a ser denominada rua D. Leonor Porto (Diário de Pernambuco, ed.107, 13 maio 1902). Da mesma forma, uma escola também foi nomeada com sua homenagem, datando a primeira referência a ela em 1919 (Diário de Pernambuco, ed.118, 5 maio 1919). A Escola Leonor Porto situava-se no Recife, na rua Padre Floriano, nº80, mantida pela Liga Pernambucana contra o Analphabetismo (Diário de Pernambuco, ed.17, 20 jan. 1922). Nas edições dos periódicos recifenses de comemorações e homenagens ao dia 13 de maio, Leonor Porto é citada entre os principais líderes do movimento abolicionista do Recife, sendo referida como “à vanguarda da grande campanha” (Jornal do Recife, ed.129, 14 maio 1929), “ilustre abolicionista pernambucana” (Diário de Pernambuco, ed. 209, 1º ago. 1918), “distinta pernambucana, cujo nome se acha ligado (...) à história gloriosa da propaganda abolicionista” (Diário de Pernambuco, ed. 21, 27 jan.1897). Apesar de ter sido fundada em um momento de radicalização do movimento, a Sociedade Ave Libertas tinha em seu estatuto (FERREIRA, 1999, p. 205), logo no artigo 1º, parágrafo 1º Art 1º - Fica criada no Recife uma associação abolicionista com a denominação de Sociedade Ave Libertas, cujos fins são: §1º - Promover a libertação de todos os escravos do município do Recife por todos os meios lícitos e legais ao seu alcance. [grifo nosso]. Portanto, em sua maior diretriz, as sócias do Ave Libertas, no primeiro artigo, deixaram claro que agiriam conforme a lei. Todavia, encontramos relatos que as identificavam como umas das principais articuladoras da luta clandestina contra a escravização no Recife. Contrariando o que foi posto neste estatuto, Leonor e outras sócias teriam participado de diversas ações ilegais realizadas pelo abolicionismo radical recifense, especialmente nas fugas de escravos para a província do Ceará, encabeçadas pela associação clandestina Club do Cupim. A modista teria, por diversas vezes, utilizado seus dotes de costura para disfarçar “molecotes” como “matronas” (Jornal do Recife, ed.136, 20 maio 1917). Os garotos eram conduzidos, disfarçados por Leonor Porto como damas, até o cais do Recife por um membro do Club do Cupim, enquanto José Mariano, político liberal muito popular e um dos líderes abolicionistas mais conhecidos da cidade, distraía as autoridades, puxando conversa. Desta maneira, o rapazola embarcava, rumo à província livre do Ceará. Outra contribuição de Leonor e de suas sócias era esconder escravizados fugidos em suas casas, até que a rede clandestina pudesse estabelecer um plano de fuga seguro (Jornal do Recife, ed.128, 13 maio 1914 e Diário de Pernambuco, ed. 109, 11 maio 1938). Assim, de acordo com esses relatos e com o excerto referenciado na abertura deste ensaio, a Sociedade Ave Libertas foi fundada como um ramo legal das ações abolicionistas de suas associadas. A perseguição aos abolicionistas, engendrada a partir de 1884, com a ascensão do Gabinete Cotegipe, teria sido o mote para a criação desta associação, como um meio de autoproteção e desvinculação destas mulheres das possíveis punições às quais estariam sujeitas, se pegas em atividades ilegais. O fato de estes relatos serem praticamente ignorados e a real dimensão da participação feminina no movimento abolicionista brasileiro ser pouco estudada demonstra a urgência em aprofundar tais investigações. *Tássia Fernandes Paris é historiadora e professora de história, mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Campina Grande. Pesquisadora da Humanas – Pesquisadoras em rede e membra do Grupo de Estudos Feministas Dandara dos Palmares. Pesquisa escravidão, diáspora africana, abolição e mulheres abolicionistas. Mora na Paraíba, na cidade de Cuité, com dois filhos, seu companheiro e cinco cachorros, fora os peixes. Referências bibliográficas FERREIRA, Luzilá Gonçalves. Suaves Amazonas: mulheres e abolição da escravatura no Nordeste. Recife: Universitária da UFPE, 1999. NASCIMENTO, Alcileide Cabral do; LUZ, Noemia Maria Queiroz Pereira da. Liberdade, transgressão e trabalho: cotidiano das mulheres na cidade do Recife (1870-1914). Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, vol. 5, n. 1, jan-jul., 2012, pp. 126-149. SANTOS, Maria Emilia Vasconcelos dos; LEANDRO, Jacilene de Lima. As mulheres e o movimento abolicionista: participação e engajamento (Recife, 1880-1888). Gnarus Revista de História, vol. X, n. 10, set 2019, pp. 48-55. SANTOS, Maria Emilia Vasconcelos dos. O 25 de março de 1884 e a luta pela libertação dos escravos em Pernambuco. Clio Revista de Pesquisa Histórica, vol. 33, n. 2, jul-dez 2015, pp. 158-180. SILVA, Wladimir Barbosa; BARRETO, Maria Renilda N. Mulheres e abolição: protagonismo e ação. Revista da ABPN, vol. 6, n. 14, jul-out 2014, pp. 50-62. Referências da imagem Retrato utilizado como capa do jornal Ave Libertas, publicado em 1885, no Recife, pela Tipografia Mercantil, em homenagem ao primeiro ano de fundação da Sociedade Ave Libertas. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=731935&pesq=%22Ave%20libertas%22&pagfis=